sábado, 28 de agosto de 2010

RESUMO(18)

Hoje, 28 de Agosto, para variar, aí vão duas publicações:

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5º INTERNAMENTO

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No dia 16 de Abril, segunda-feira, começo o quinto tratamento, com enjôos e noites mal dormidas. Penso não me enganar, mas penso que foi neste que faleceu uma das senhoras da sala/enfermaria.

A sala era de cinco pessoas. Ela estava em frente a mim, um pouco ao lado. Entrou um dia, já eu estava enjoada, de maca, trazida por bombeiros. Vim a saber mais tarde que tinha sido enviada para lá de outro hospital de Coimbra. Já tinha ficha no IPO, estava mal, portanto…toca a despachá-la, que as estatísticas ficam melhor. Bem, a senhora chegou e estava a oxigénio, “a 3” como eu ouvi, embora não saiba o que isso quer dizer.

Os enfermeiros andavam numa lufa-lufa, com cara séria. Deu-me a impressão que não estavam nada contentes e estavam até um pouco aflitos. Pensei que tivesse a ver com o facto de não haver cuidados intensivos naquele internamento. Pouco tempo depois aquele ruído próprio do oxigénio, que ninguém esquece e não se consegue explicar, passou de três para seis. A noite aproximava-se. O ruído continuava. A filha da senhora esteve lá e chamava por ela, sem obter mais resposta do que um apertar das mãos. O vaivém de enfermeiros e médicos continuava. Não havia cama livre nos Cuidados Continuados. Não havia mais nenhuma sem ser aquela, depois de procurarem uma cama que tivesse oxigénio e outras coisas que pudessem vir a ser precisas.

A noite chegou com a ronda dos medicamentos das onze. O oxigénio passou para nove. Meti na boca um calmante e nos ouvidos uns tampões. Pobre senhora. Eu estava a ficar aflita com a aflição dela. Decerto não conseguia respirar. As auxiliares daquele turno não tinham deixado a senhora bem posicionada e os enfermeiros não repararam nisso também. Assim, claro que respirava mal. Sentir-se-ia concerteza incomodada com um tubo no nariz. Por vezes acordava e dizia algo. Tirava o oxigénio várias vezes. Claro que era eu e a senhora que estava ao meu lado quem dava o alarme. Estávamos as duas aflitas com aquilo que se passava. Sabíamos o que se aproximava, mas eu sou peculiarmente ligada a faltas de oxigénio, tendo apenas um pulmão. Tenho pavor que isto me aconteça. Ainda lá foram enfermeiros que aumentaram o oxigénio de nove para doze. Mas o ruído continuava forte, de cadência pesada, o sono da senhora seria sono, sonho ou pesadelo? Que pensaria ela? Não dissera nada a quem lhe perguntara algo. Tive tanto medo. O que se passaria na cabeça dela. Será que quando estamos assim pensamos? Será que sonhamos? Será que começamos a ver coisas que nunca antes vimos? Será isto a que chamam o “reino dos céus”? Horas mais tarde, vi que se passava algo naquele cubículo. Vi tirarem a cama, mas não consegui ver mais nada com atenção. Todo o pessoal envolvido tratou da situação com extremo cuidado e silêncio. Pena que não tenham conseguido fazer com que a senhora não morresse. Numa das rondas seguintes, poucos minutos depois, perguntei ao enfermeiro que me foi ver, o que se passava. A resposta, bem providencial, foi: “Não se preocupe, agora está tudo bem. Faça por descansar, sim?” E penso que terá sido assim. Finalmente aquele sofrimento terminara para aquela senhora. Os filhos tiveram dois dias para se habituar á ideia, praticamente. No domingo, a senhora tomara o seu duche sozinha e bem. Sentiu-se mal ao final do dia, e foi às urgências. Lá ficou…até descobrirem que ela tinha processo no IPO, e sendo doente oncológica poderia ser reencaminhada. Imagino que isto tenha dado imenso jeito às estatísticas, tão torcidas e retorcidas surgem elas pelo nosso país. Lembro-me que a senhora chegou perto da hora de jantar de segunda-feira. Terça e quarta-feira foram dias de agonia, em cada um dos quais um dos dois filhos a visitou. A filha, teria concerteza mais capacidade de estar presente e apareceu todos os dias. Deve ser terrível, embora pense nisto e recorde o que me aconteceu aquando do enfarte do meu pai, deve ser horrível ver o nosso pai / mãe cair numa cama do hospital e de repente tudo vira do avesso, não fizemos tudo, não dissemos tudo, e …depois esperamos que corra bem. Aqui não correu. Na madrugada de quarta para quinta-feira, a senhora finou-se. A senhora auxiliar que chamei disse “Esta senhora é para estar assim!”. E até seria, mas não o devia ter dito como disse, nem sequer em voz alta, em plena noite, numa enfermaria, em que é fácil ouvir tudo. Continuo a pensar hoje, no momento em que escrevo, na quantidade de nódulos que tenho no único pulmão sobrevivente, no que me vai suceder, no sofrimento que terei ou não. Só espero que seja rápido, sinceramente. Perdoem-me a frontalidade e crueza da afirmação. Pelo que vi, quero que seja rápido se for por aí. Essa senhora auxiliar andou em conversas com uma amiga minha, que não sabia da história. Resumo: conhecia-me por fazer lá os internamentos de cinco dias (posso adiantar que a sua secção quase não tem contacto com doentes enjoadas como eu), e gostava muito de mim. Como podem ver, está atestado que tenho aura de anjinho brilhando por todo o lado, incluindo sítios com os quais não contacto, ah ah ah. Bem, disse que gostava muito de mim. Eu, depois de me certificar de que estávamos a falar da pessoa correcta só consegui dizer: “Não gosto dessa senhora porque grita de manhã para nos acordar, não tem cuidado nenhum connosco e aconteceu a seguinte história…”

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Comentários para quê...

Desculpem se vos incomoda este tipo de texto ao fim-de-semana, mas está quase a acabar.

O pai Bártolo

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