Disse a senhora de olhos esbugalhados virada para mim, que envergava um belo pijama da praxe que permitia que lhe fosse administrado o tratamento dos “sacos pretos”. Tinha sonda de alimentação, mas o horror era eu, de 38 anos, com cancro do pulmão e ali á frente dela. Fiquei preocupada comigo: apeteceu-me bater-lhe, e isso é má atitude. Mas ela olhou para mim como se eu fosse um esqueleto ou assombração.
Quando chega alguém a uma enfermaria de cinco mulheres, há duas hipóteses: uma é arrancar a história e “cadastro” á recém-chegada através de um chorrilho de perguntas. A outra é esperar que a nova hóspede se instale, sossegue e deixe que lhe tratem a maleita.
Desta vez, eu estava a fazer tratamentos em internamentos de cinco dias e cinco noites. Não sou por natureza faladora, não tenho de contar a minha vida a ninguém, e mais do que isso, tenho idade suficiente para pensar antes de abrir a boca. Já tinha feito uma série de seis ciclos de três dias também em internamento, pelo que…desconfiava no que me ia meter.
Por vezes, podemos “meter a pata na poça” ao falarmos acerca de algo que diz mesmo, mas mesmo, respeito a quem está ao lado. Seja na sala de espera, seja na enfermaria, seja na fila do supermercado.
Passo a exemplificar, só dentro do internamento já ouvi:
“Quando é no pulmão é logo, duram pouco tempo.” (eu tenho nódulos no pulmão) Desta vez, a senhora que disse isto perguntou-me, a seguir onde é que eu tinha a coisa cujo nome ela não conseguia pronunciar. E eu disse: “O quê? O meu cancro? Olhe…foi no pulmão esquerdo, que tirei. Depois foi para o ombro direito, e agora está também no pulmão direito.” Ela demorou um pouco a assimilar tudo, mas quando voltou a falar para mim foi quando saí com alta do tratamento. Sei quais são as minhas probabilidades estatísticas, e são más, mas ainda me dou ao luxo de escolher quem me diz isso.
- “Depois quando fiz os sacos pretos senti-me muito mal e caiu-me o cabelo”. (os sacos pretos são colocados por cima dos sacos de soro que têm o tratamento citostático, seja ele qual for, para os proteger da luminosidade; a maioria das pessoas que faz quimio não vai lá levar soro fisiológico simples, né?) O cabelo não cai a toda a gente, nem isso é sinónimo de que o tratamento seja mais ou menos forte, mais ou menos eficaz, por amor da santa! Cá em casa essa dos sacos pretos já é piada. São usualmente utilizados para meter roupa usada, chinelos, para forrar os vomitórios, etc.
- “Ai, aqui a gente toca a campainha e nunca vêm, devem estar a dormir” (nem vale a pena comentar o ratio doente/enfermeiro em hospitais públicos) Ok, há um enfermeiro que se queixa tanto das maleitas dele, que quem tem cancro acaba por se sentir em muito melhor estado! Eu, pessoalmente continuo a achar que ele é chato e devia ser mais profissional. Depois também temos os teóricos, que ficam super-contentes quando encontram alguém que entende aquele jargão de enfermagem e medicina sem ficar roxo e dá para manter uma conversa de 20 minutos. Há também os super-eficientes, os que correm e fazem tudo bem, os que não correm, os que são muito atentos, os que deixam trabalho para o turno seguinte quando deixam o soro a pingar a 20 noite fora… Há de todo o tipo. Como em todas as profissões. E será que na casa dessas doentes a atenção é assim tão boa? Considerando o apetite com que engolem a comida da enfermaria…ou eu cozinho muito bem, ou anda muita coisa encoberta (já com o devido desconto para os enjoos que também já experimentei). E depois, considerando as lamentações á assistente social que as cortinas deixam ouvir… se calhar o defeito não é da campainha. Deve ser algum tipo de esperança de que outras situações se resolvam, talvez por efeito do “saco preto”.
Não voltei a encontrar a senhora dos olhos esbugalhados, penso eu. Nós engordamos e emagrecemos em espaços de duas semanas, temos cabelo e ficamos carecas, inchamos e desinchamos por causa dos corticóides, enfim, é fácil mudarmos de aspecto, de cara. Eu sou, desde que me conheço, bastante despistada com caras e nomes. Talvez se revele uma vantagem, afinal.
Neste caso receio voltar a encontrá-la e não a reconhecer. Prometi a mim mesma não fomentar conhecimentos nem amizades entre as minhas colegas doentes. Não acho boa ideia, porque a dada altura olhamos para o telemóvel e não sabemos se ainda podemos ligar, ou se vamos falar com algum familiar. Aconteceu-me uma vez, não quero que volte a acontecer.
Quanto a esta senhora…espero evidentemente que tenha melhorado, que já não precise da sonda de alimentação, que não tenha assustado mais ninguém e que tenha aprendido a refrear as reacções na cara dos outros.
É que se for preciso explicar-lhe direitinho, eu explico, com todas as letras e sem rodeios. E serei mal criada, se o fizer. A malta vai tentando resistir a bocas foleiras, mas algum dia está de chuva e não sei.
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