sexta-feira, 31 de julho de 2009

"Ai que horror"

“Ai que horror”

Disse a senhora de olhos esbugalhados virada para mim, que envergava um belo pijama da praxe que permitia que lhe fosse administrado o tratamento dos “sacos pretos”. Tinha sonda de alimentação, mas o horror era eu, de 38 anos, com cancro do pulmão e ali á frente dela. Fiquei preocupada comigo: apeteceu-me bater-lhe, e isso é má atitude. Mas ela olhou para mim como se eu fosse um esqueleto ou assombração.


Quando chega alguém a uma enfermaria de cinco mulheres, há duas hipóteses: uma é arrancar a história e “cadastro” á recém-chegada através de um chorrilho de perguntas. A outra é esperar que a nova hóspede se instale, sossegue e deixe que lhe tratem a maleita.

Desta vez, eu estava a fazer tratamentos em internamentos de cinco dias e cinco noites. Não sou por natureza faladora, não tenho de contar a minha vida a ninguém, e mais do que isso, tenho idade suficiente para pensar antes de abrir a boca. Já tinha feito uma série de seis ciclos de três dias também em internamento, pelo que…desconfiava no que me ia meter.



Por vezes, podemos “meter a pata na poça” ao falarmos acerca de algo que diz mesmo, mas mesmo, respeito a quem está ao lado. Seja na sala de espera, seja na enfermaria, seja na fila do supermercado.

Passo a exemplificar, dentro do internamento já ouvi:




  1. “Quando é no pulmão é logo, duram pouco tempo.” (eu tenho nódulos no pulmão) Desta vez, a senhora que disse isto perguntou-me, a seguir onde é que eu tinha a coisa cujo nome ela não conseguia pronunciar. E eu disse: “O quê? O meu cancro? Olhe…foi no pulmão esquerdo, que tirei. Depois foi para o ombro direito, e agora está também no pulmão direito.” Ela demorou um pouco a assimilar tudo, mas quando voltou a falar para mim foi quando saí com alta do tratamento. Sei quais são as minhas probabilidades estatísticas, e são más, mas ainda me dou ao luxo de escolher quem me diz isso.

  2. “Depois quando fiz os sacos pretos senti-me muito mal e caiu-me o cabelo”. (os sacos pretos são colocados por cima dos sacos de soro que têm o tratamento citostático, seja ele qual for, para os proteger da luminosidade; a maioria das pessoas que faz quimio não vai lá levar soro fisiológico simples, né?) O cabelo não cai a toda a gente, nem isso é sinónimo de que o tratamento seja mais ou menos forte, mais ou menos eficaz, por amor da santa! Cá em casa essa dos sacos pretos já é piada. São usualmente utilizados para meter roupa usada, chinelos, para forrar os vomitórios, etc.
  3. “Ai, aqui a gente toca a campainha e nunca vêm, devem estar a dormir” (nem vale a pena comentar o ratio doente/enfermeiro em hospitais públicos) Ok, há um enfermeiro que se queixa tanto das maleitas dele, que quem tem cancro acaba por se sentir em muito melhor estado! Eu, pessoalmente continuo a achar que ele é chato e devia ser mais profissional. Depois também temos os teóricos, que ficam super-contentes quando encontram alguém que entende aquele jargão de enfermagem e medicina sem ficar roxo e dá para manter uma conversa de 20 minutos. Há também os super-eficientes, os que correm e fazem tudo bem, os que não correm, os que são muito atentos, os que deixam trabalho para o turno seguinte quando deixam o soro a pingar a 20 noite fora… Há de todo o tipo. Como em todas as profissões. E será que na casa dessas doentes a atenção é assim tão boa? Considerando o apetite com que engolem a comida da enfermaria…ou eu cozinho muito bem, ou anda muita coisa encoberta (já com o devido desconto para os enjoos que também já experimentei). E depois, considerando as lamentações á assistente social que as cortinas deixam ouvir… se calhar o defeito não é da campainha. Deve ser algum tipo de esperança de que outras situações se resolvam, talvez por efeito do “saco preto”.


Não voltei a encontrar a senhora dos olhos esbugalhados, penso eu. Nós engordamos e emagrecemos em espaços de duas semanas, temos cabelo e ficamos carecas, inchamos e desinchamos por causa dos corticóides, enfim, é fácil mudarmos de aspecto, de cara. Eu sou, desde que me conheço, bastante despistada com caras e nomes. Talvez se revele uma vantagem, afinal.

Neste caso receio voltar a encontrá-la e não a reconhecer. Prometi a mim mesma não fomentar conhecimentos nem amizades entre as minhas colegas doentes. Não acho boa ideia, porque a dada altura olhamos para o telemóvel e não sabemos se ainda podemos ligar, ou se vamos falar com algum familiar. Aconteceu-me uma vez, não quero que volte a acontecer.
Quanto a esta senhora…espero evidentemente que tenha melhorado, que já não precise da sonda de alimentação, que não tenha assustado mais ninguém e que tenha aprendido a refrear as reacções na cara dos outros.
É que se for preciso explicar-lhe direitinho, eu explico, com todas as letras e sem rodeios. E serei mal criada, se o fizer. A malta vai tentando resistir a bocas foleiras, mas algum dia está de chuva e não sei.









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quarta-feira, 29 de julho de 2009

Texto Intratável de Hoje - "Carta do Sonho ao Fantasma"


Carta do Sonho ao Fantasma

17 de Julho de 2004

Querido Daniel,
Escrevo-te porque vou ser operada e tenho medo. Ainda faltam duas semanas, mas entretanto vou a Londres para matar saudades.

Foi-me diagnosticado um cancro. Vão tirar-me o útero e os ovários. Avançou muito rápido. Se calhar é por eu não gostar de esperar. Eu estava perfeitamente a leste. Tinha feito os exames de rotina e estava tudo normal. Em meio ano tudo se virou do avesso. A minha saúde fugiu não sei para onde. A recuperação não vai ser fácil e não vou querer ver-te durante uns tempos, se correr bem. Se correr mal, não vou ver-te mesmo, não é?

Queria, considerando o pior, pedir-te desculpa por algumas coisas.
Nunca devia ter-te permitido entrares na minha vida. Eras muito novo para aturar uma neurótica como eu. OK, talvez não neurótica, mas com feitio muito difícil. Não nos entendemos quanto ao papel de cada um na “relação”. Deves ter pensado que eu queria comandar tudo, mas não. Eu só queria que te sentisses seguro, porque a nossa relação não era muito normal, e os obstáculos apareciam todos à tua frente. Estas coisas de trabalho, por vezes, complicam a vida em si. Foi o que nos aconteceu.
Eu não tive força, não te entendi. Tu nunca me disseste nada do que pensavas realmente, só fugias e acabei por ficar enraivecida.
Foste trabalhar para longe, fizeste bem. Eu só iria atrapalhar o teu percurso, e podia inclusive perder o meu emprego.

Continua a ser como és, forte, curioso, activo, bonito e inteligente.
Acredita sempre em ti.
Tenho um pressentimento estranho que não sei explicar.

Bem, daqui a uns meses, quando eu puder viajar, vou aí. Depois conversamos.

Até sempre.

Jokas da Bela.
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quinta-feira, 23 de julho de 2009

Texto Intratável de Hoje - "Carta de Joana ao Fantasma"



Carta de Joana ao Fantasma


25 de Julho de 2004

Caro amigo,
Escrevo-lhe porque não consigo dizer-lhe pessoalmente o que deve ficar a saber. Eu sou amiga da Bela, tal como a Ana e a Clara, que conhece. Sei que está bastante longe e que não tem hipótese de andar a viajar de um lado para o outro.

A Bela recebeu um diagnóstico de cancro no útero, em fase avançada, pelo que lhe marcaram a operação rapidamente. Antes da operação teimou que havia de ir, pelo menos, a Londres uma última vez, já que depois da operação estaria sujeita a uma recuperação dolorosa e incapacitante.
Infelizmente não chegou a ir.

Faleceu no hospital, no dia 19, depois de ter sido atropelada por um bêbedo. Eram nove da noite e ia jantar com os primos. A Bela foi a única vítima do despiste daquele assassino.

Ela tinha medo da operação, apesar de não o dizer a ninguém. A Bela nunca pedia ajuda, não era? Sabe que não era por orgulho? Era a sua eterna mania de não “incomodar” ninguém. Não sei bem por que razão, mas ela deixou algumas cartas, incluindo uma para si.

É essa carta que envio junto.

Lamento a sua perda, fique bem, dentro do possível.

Um abraço da Joana.
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quarta-feira, 22 de julho de 2009

Terceira Fase - Ciclo 1

Manhã de 22 de Julho


Ontem tive alta pelas 15h30, e ainda direito a beijinho de despedida da minha querida Enfermeira Carla.

Até este momento não estou mal disposta.
Tenho de fazer o esforço de não enjoar a sopinha, senão…quem paga são os intestinos que pouco funcionam, apesar dos quilos de fruta e vegetais, lactuloses e afins. Tanta coisa os ataca que nem sei como não foram de férias.

Desta vez o tratamento foi mais fácil. Durou cerca de 25 horas. Dei entrada pelas 11h00 da manhã, mas o protocolo só teve início pela tarde. Isto deu direito a uma só noite de internamento e poucas refeições.

Como estou bastante limitada, tomei banhoca antes de ir e depois quando voltei a casa. Não andei a espalhar mau cheiro, hi hi.
É que sou esquisita com os wc. Iria precisar de ajuda para o banho, e a enfermaria estava cheia. Optei (já antes de ir) por tomar em casa. Alivia imenso o esqueleto aquele duche. Mas isto de não me dobrar não dá jeito.

Não sei se recupero essa função ou se a medula ficou com danos irreversíveis. Não chegar aos pés limita imenso. Há variadíssimas coisas cá em casa arrumadas abaixo do nível dos joelhos e eu não tinha reparado. Mas fui eu que as arrumei lá! Agora…paciência. Vou tentar ajoelhar-me, se não conseguir de outro modo. Se não arranjar uma alternativa dou cabo da osteoporose da minha mãezita e das hérnias discais do meu paizito.

Vêem? Lá está o meu trauma de novo: eles não aguentam tudo. Tenho de me ver livre desta coisa, e o meu Doutor Rezingas puxa-me bem para cima.
Ele já reparou, e correctamente, que sou frontal. O que tem a dizer, diz-me, com o nome que tem, com a probabilidade que existe. Se fica em silêncio, ok, não vale a pena perguntar mesmo. E é assim que eu gosto.
Faz-me impressão ter um médico á frente que não nos diz a verdade, que tenta amenizar como se fôssemos tolinhos. Nós, os pacientes notamos e lemos nas entrelinhas. Desconfiamos e ficamos ainda pior. Se disser a verdade (o que deve ser dificílimo para um médico no caso de ser uma má notícia), dói dessa vez, mas depois a relação será mais fácil.

Sou da opinião de que não adianta possuir um grande génio científico e médico se a relação falhar com o doente. Sem comunicação, não há nada.
No início deste meu acidente de percurso, dei de caras com um grande médico do BCG que me tratou como uma coisa. Mandou-me fazer um TAC, que fiz, fui novamente a consulta, perguntei 4 vezes e educadamente o que se passava ou o que poderia ser e o que consegui saber foi que iria fazer uma broncofibroscopia, que nas palavras do distinto médico consistia em “enfiar um tubinho com uma câmara até aos brônquios”. Alto lá, pensei eu, vão mexer-me nos brônquios por quê?

Fui, e o resultado foi muito aborrecido. O exame não era tão fácil como ele tinha pintado, não devia ter ido sozinha…bem, assinei um termo de responsabilidade e não fiz o exame, ficando com a TAC em meu poder.

Fui a correr ter com o meu médico assistente e mostrei-lha, ou melhor, com o médico que trabalhava na equipa do meu médico assistente e me conhecia há 3 anos. Foi ele, que depois de me ter dito que não sabia tudo sobre o assunto, me explicou que parecia haver um tumor e devia mesmo fazer o tal exame, …mas foi ele que me explicou. O grande senhor doutor não soube fazer isso.
Foi, até hoje o único caso em que tal me aconteceu. A partir daí, só me calham os meus anjos (como lhes chamo).
Vamos ver se o meu sangue se aguenta (análises próxima semana) e se perco uns quilitos que estão a atrapalhar.
Vou ver se faço alguma coisa enquanto há efeito dos analgésicos. Estou meio-ganzada e sem dores. Sou oficialmente uma drogada autorizada.

Até mais logo.
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sábado, 18 de julho de 2009

Texto Intratável de Hoje - "Carta do Sonho a Joana, Ana e Beatriz"



Carta do Sonho a Joana, Ana e Beatriz

17 de Julho de 2004

Caras amigas,
A carta que vos mando é um desabafo. De tudo o que sabem e não sabem de mim, e do que sei sobre vós.

Sempre me preocupei que tu, Ana, não tivesses força para voltar a confiar e não voltasses a tempo à tua juventude. Queria tanto que fosses feliz. E tens sido. Ainda bem que traçaste o teu rumo na escrita e tens tido sucesso com os teus livros. Tu não cabes no espaço normal que as pessoas costumam ter. A tua criatividade não assenta em qualquer lado. Nisso o António tinha razão: nasceste cem anos adiantada. Felizes aqueles que puderam cruzar o seu caminho com o teu.

O teu segundo filho vai nascer daqui a quatro meses e sei que queres que eu seja a madrinha. Por esse motivo, gostava que tu e o teu marido considerassem uma proposta de um nome para o teu rebento. Eu gostava que ele se chamasse Daniel. Vai ser forte e curioso, activo e bonito, inteligente e carinhoso. Não me perguntes como sei isto, só sei.

E tu, Beatriz, não tenhas medo. Desta vez vai correr bem. O Bruno já aprendeu. Vocês andaram tanto tempo a evitar-se que agora já não têm mais desculpas. Já conhecem os defeitos, portanto agora prestem atenção só às qualidades. Ser pessimista não leva a lado nenhum, ou melhor, até leva, mas chegamos lá de rastos e…não vale a pena. Ainda vais ter os teus três filhos. E vão ser lindos como o pai e fortes como a mãe. Sim, tu és forte, Beatriz. Só alguém forte teria lutado tanto para ser perfeita como queres ser e tão justa como és. O facto do Bruno ter acabado uma relação de anos não te pode assustar. Pensa bem, eles partilhavam algumas coisas, mas pouco tempo juntos. Agora que ele mudou de emprego e já não trabalha por turnos, sei que vão ter uma vida bonita, como merecem.

Joana, escrevo-te em último lugar, mas não com menos importância. O teu Anjo sabe muito bem que é contigo que pode contar nos dias bons e maus. Ele não é estúpido. Só é teimoso e orgulhoso. Enquanto não estiver bem profissionalmente, não descansa. Tu és a princesa. Tem esperança. Vais ser feliz.

Eu vou a Londres na próxima semana, enquanto posso viajar. Já não posso ir à Escócia, à Austrália nem à Rússia nos próximos tempos. Isto para já não falar dos Estados Unidos.
Ainda tenho dinheiro poupado, por isso não se preocupem que está tudo controlado. Tenho instruções para tudo.

Sabem? Aquela minha desordem que me levou ao médico? Ainda pensei que estava grávida, mas o teste deu negativo. Espantadas? Não interessa. Agora já não interessa. Continuei com sintomas estranhos, dores e mal-estar. Fiz nova citologia e telefonaram-me do IPO seis dias depois. Tenho um cancro no útero, desenvolveu-se muito rapidamente. Quando voltar de Londres vou ser operada. Vão tirar-me tudo. Vou deixar de ser eu.

Quando voltar telefono, para vos dar mais detalhes e combinarmos uma festa no hospital, sim? Ouvi dizer que a anestesia é uma pedra!

Até à vista amigas
Beijos
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Atacada pelo sono muito forte...


estou terrível e dou duplos cliques em todo o lado.

Teimo em não dormir a sesta e depois é isto, quase não me aguento de olhos abertos com os opiáceos da consulta da dor.

Desculpem a brevidade. Ontem tive consulta, tudo se arrastou, estive imenso tempo á espera, sentada, até porque para caminhar preciso de bengala. Resultado: ficou a doer mais aquela parte das pernas que funciona pouco.


Bem, o tratamento que vou fazer é tão recente, que a Doutora não quis iniciar no fim de semana. Há redução de pessoal, e este requer uma vigilância mais apertada. Não que aconteça efectivamente algo, mas como não sou doente dela ( o meu Doutor Rezingas está de férias e deixou-me entregue a ela para não atrasar mais) a Doutora prefere que eu vá só na segunda feira.

Este é um produto derivado de um micro-organismo marinho sintetizado em laboratório. A 1º vez que li algo acerca disto foi em 2007, na altura em que o produto esperava autorização de comercialização após cerca de 20 anos de estudos. Na altura não sonhava eu que iria fazer quimio, isto é, na altura a hipótese parecia afastada. Bem, entretanto foi autorizado, mas mesmo assim, para me ser administrado carece de autorização de 2 sítios (do conselho de administração e do infarmed).

Agora a parte assustadora: vou ser a 4ª ou 5ª pessoa a receber este tratamento no IPO. O grupo de estudos também foi mais pequenino, dada a raridade deste tipo de tumor.

Porque é que me querem assim tão guardadinha? Porque este tratamento pode ter muitos efeitos a nível sanguíneo, de coisas com nomes intermináveis.


Basicamente, tenho de me aguentar bem aqui com os meus valores para receber o tratamento. Pelo que li, não curou ninguém ainda,mas ajudou. Sei o que tenho lido ao longo destes dois anos, e sei quais são as minhas hipóteses estatísticas. Não vou dizer o nome do tratamento, dado que o meu Doutor Rezingas está a começar o processo, vou fazer como se estivesse em segredo de justiça. Já fiz dois protocolos, este será o terceiro.


Parece que vou ter de fazer disto estilo de vida.

Segunda lá vou, ver como corre. Um dos maus efeitos é perder apetite e enjoar. Estes são dois simpáticos, considerando que tenho cerca de 10 kgs a mais. Dava jeito perder alguns.

Dava jeito não ter os outros.


Grande beijinho a quem estava á espera de notícias. Deixo também um texto marado para vos moer o juízo.
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quinta-feira, 16 de julho de 2009

Texto Intratável de Hoje - "Quinta Carta do Sonho ao Fantasma"

Quinta Carta do Sonho ao Fantasma



13 de Junho de 2004

Fiz ontem o teste. Deu Negativo. Aquela nossa loucura reprimida que soltámos junto ao rio naquela tarde quente de Maio não deixou rasto.
Sabes que sonhei que estava grávida? Bem sei que não te disse nada. Foste trabalhar para longe. E como gostas de trabalhar aí, e não temos nada…de nada…nem sequer telefonas.

Aquilo que disseste sobre as mulheres que não se opõem ao sexo deixou-me zangada. Sei que não estavas a falar de mim, mas será que há assim tanta diferença? Eu não me opus, provoquei-te, e nem sequer temos uma relação.
Por isso a minha raiva. Por isso o susto com o sonho, e o sonho saído só susto.

Se o teste tivesse dado positivo eu não te ia dizer nada. Quando me voltasses a ver, estaria grávida e orgulhosa por poder ser mãe, uma bênção que vai fugindo com o tempo. Seria um filho só meu. Eu não concordo muito com esses egoísmos de mãe, mas seria a última oportunidade para mim, sabes? E tu não serias capaz de me perguntar se o filho era teu. Irias, ao mesmo tempo, duvidar e ter certeza. Quererias que fosse teu, mas o momento seria errado e a mãe também. Não tem mal dizeres a verdade. Queres passar mais dez anos a tratar de consolidar a tua vida, não é? Acho bem. Só que nessa altura já vou estar fora de validade.
Lamento, meu querido.

Se não fizeres nada não vou estranhar.
Não o fizeste até agora. E não me venhas com a treta do “Tu sabes”. Eu não sei, preciso que me digas se sentes, se queres, o raio que te parta…qualquer coisa. Se quiseres fala. Pode ser que eu ainda exista no dia em que te decidires.

Tenho pena de ter dado negativo. Não ia ser nada fácil, mas ia ser bonito.
Porta-te bem.




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quarta-feira, 15 de julho de 2009

O que esperava..veio. Obrigada.

Quase seis da tarde e toca o telefone (sempre o do meu pai, o de rectaguarda, o do cuidador claro está).

Fui convocada para consulta no IPO esta sexta-feira. Tenho as análises da praxe antes e tenho de heparinizar o CTI. Conforme me tinha explicado o meu querido Médico Rezingas (eu cá acho que ele nem rezinga nada, mas...) começarei novo tratamento, dado que o anterior só não deixou que os nódulos aumentassem. Fora isso permitiu que houvesse invasão de 2 vértebras e tal. Era ifosfamida.

Ok, next! Só queria que me chamassem para seguir em frente. Não sei se ficarei internada já na sexta, dado que sendo daqui facilita muito estas coisas do "fica-não-fica-vai-almoçar-a-casa". É que o meu querido Médico Rezingas está de férias, mas deixou-me entregue a Doutora de ar doce e caladinho.

Mesmo que o tratamento seja para a próxima semana já é melhor, ou seja, É!

Estava a passar-me a ver o tempo passar.

Não sei como vou reagir a este novo tratamento. É a terceira série, o corpito já está estragado em algumas coisas, mas vai ter de dar.


Sei que vão torcer por mim. Se amanhã não me desorientar com milhentas coisas a fazer venho cá deixar mais um daqueles textos doidos para vos dar cabo do cérebro no fim de semana, sim?


Beijinhos e abraços a quem passa.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Minha mãe guerreira vs. INUTILIDADE

Pois na quinta-feira passada, tal como eu andava a desconfiar, pelos sinais de cansaço, lá foi a minha mãezita parar ás urgências, com mau estar e tonturas, depois de ter vomitado e mais umas coisas. Foi levada pelo meu pai, e eu, reduzida como me sinto agora, fiquei a ver (porque dá para o fazer com binóculos) a porta do hospital. Isto foi pela hora do lanche. Teve alta pela uma e pouco da manhã. Foi-lhe diagnosticado Síndrome vertiginoso SOE, veio com medicação para reduzir as vertigens e lá continua com o calmante que lhe foi receitado da outra vez que foi lá ter, em finais de Maio passado. Dessa outra vez fez amnésia. É uma dose muito grande para a minha mãe-guerreira. Tem consulta marcada no hospital para os finais deste mês, mas claro que terá de ser seguida por um médico cá fora. Anda a ver quando há um intervalo nas agendas dos crónicos cá de casa.


Lá se dormiu, e na sexta-feira depois de almoço lá fomos de armas e bagagens para a casa deles, numa aldeia que dista cerca de 25km daqui. Eu, claro, a descer escadas sozinha, mas sem poder levar sequer a maleta do portátil.
Foi tão divertido apanharem lá as galinhas e gansos e limpar jardim e ervinhas e tal que…as hérnias discais do meu pai pifaram. Lá ficou ele hiper-zangado e teve de passar o dia de sábado na cama, esperando o efeito de uns analgésicos jeitosos que começam a abundar cá por casa. Já faziam parte da medicação SOS dele, ok? Aqui não há auto-medicação, somos é uns trastes consumidores de medicação…enfim, crónicos, né?



E chegou domingo. Acordei esquisita.
E escrevi no meu caderninho:

“A inutilidade assombra-me. Tenho de saber como se pede a reforma por invalidez. Está a acabar o tempo a que tenho direito sendo recibo verde. Acho que me sobram 35 dias de baixa. Não sei se é melhor pedir enquanto tenho actividade aberta, ou se a fecho depois de aproveitar os tais 35 dias. Que trampa.
Passo os dias em função dos medicamentos da consulta da dor e das pequenas vitórias da minha locomoção.
O diazepam é tão estranho que até me dá vontade de voltar a um universo onde já vivi, e perdoar a quem não devo. Ou será que devo? Os humanos terão o direito de perdoar? Ou será isso divino? O que consegui, juntamente com os meus pais e suas escolhas tão apuradas? Ou seria impressão minha? Será que eles não escolheram nada e eu é que imaginava todos os obstáculos? Bem, consegui ficar sozinha. Quando a coisa aperta, sobramos nós três e não chega. Tenho vindo a reparar que já não chega mesmo. Seja por mais um ano de vida que eu tenha, seja por dez…não chega, falta-me o meu amor. Sim, tenho um. E perdi-o. Perdi-o mesmo. É um pedaço de um, mais o pensamento de outro, as acções de outro, o coração de outro.
Sei quem seria o companheiro certo para os meus quarenta e seguintes, mas não me vou colar a ele tendo uma doença terminal. Conheço há muitos anos e nunca lhe dei a entender nada disso. Tratei-o sempre como amigo, conversei sempre com ele como se fosse uma irmã e nada mais. Por vezes arrependo-me. Mas pensando melhor, sempre foi poupado a este tormentoso percurso.
Essa parte de mim, dos afectos mais intensos parece ter-se desligado. Não sinto, nem em sonhos, qualquer tipo de prazer ou arrepio que me recorde essa minha faceta louca. Essa mulher morreu. Deve ter a ver com a menopausa causada pela quimio. Mas até acho que começou antes dos efeitos químicos propriamente ditos. Grande parte de mim morreu em 12 de Dezembro de 2006. Já passou um bom bocado. Tenho convivido com um pedaço de mim que está morto. Tenho vivido uma vida que escolheram para mim. Não decido nada. Nem fui eu que escolhi a peruca. Disseram-me que estava muito gira e pronto, ok, é esta. É tudo ao contrário do que eu faria e era. A trintona que vivia sozinha e tomava conta de tudo a cem á hora, trabalhava, limpava, arrumava, fazia desporto, levava trabalho para casa e ainda fazia mais uns cursos para complemento de formação e investimento numa carreira…que me deixou pendurada, sem nada, sem vínculo, sem apoio social, a viver á custa dos pais novamente. A inutilidade.
Onde estou eu?
Não faço ideia, perdi-me de vista. Se me encontrarem algures, por favor, digam-me.
Este teatro começa a cansar.
Acho que vou mudar a peça. Gostava que este tratamento resultasse, porra. Quero a minha vida de volta, só um pouco que seja, para a viver sem cometer os erros do meu passado.
Ainda te perdoo um dia destes, meu sacana que me tentaste apertar o pescoço, a cerveja não é desculpa. Andas a estragar a tua vida porque queres. Eu só perdi tempo contigo a tentar endireitar-te o rumo. Valia mais ter-me divertido eu, ter vivido mais para mim.
Mas o danado do diazepam faz-me qualquer coisa que não entendo, e sem querer ainda acabo por te perdoar.
Enquanto isso rezo para que o meu companheiro que nunca será tenha agora o sucesso merecido no seu negócio, pois é trabalhador, ao contrário de ti. E continuo a acreditar que este mundo tem de ter um equilíbrio. Tu és mau, tens de pagar por isso; ele é bom tem de usufruir.”

Hoje é segunda-feira, espero que me contactem do IPO para ir fazer o novo tratamento. Vamos ver como corre. Sei que estou gordita demais, mas sabe bem não comer só sopinha e fruta, caramba. Adoooooro bolachas e torradas (né? Jorge amigo das torradas e a Tia Branca, que me entendem ambos).


Estou serena e calma, um pouco farta de não fazer nada. Isso é, a seguir á doença, o pior que me pode acontecer: a INUTILIDADE. Ou a consciência da mesma. A consciência de ter feito um esforço enorme para ter chegado a lado nenhum. Sempre pensei que conseguia voar de collants e capa, e endireitar o Mundo no intervalo do café, caramba.
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sexta-feira, 3 de julho de 2009

Pensamentos amarfanhados...e passados

Caros amigos, tudo isto me passou pela cabeça.

Como não conseguia sentar-me para usar o pc, fui escrevendo num caderno. Agora partilho convosco.


Hoje terminei as três semanas de radioterapia á coluna. Caminho melhor, e isto ainda vai melhorar mais, juntamente com o protocolo de quimio que me espera.


Este susto foi muito grande, mas não sei se é só por ser mais um. Quando vem uma má notícia, parece ser sempre pior que todas as outras. Pensava que me ia habituando, mas continuo a resistir a isso.


Devo dizer que me sinto muito bem hoje, com esperança. Deve ter sido de bater no chão, hi hi.

Tenho saudades do quintal dos meus pais. A foto é do Rex e Miquelina, com sua prole de 9 gansos na semana em que nasceram. Acreditem em mim...agora metem respeito, estão enoooormes!


Beijinhos



28 de Junho 2009

“Toma lá, escolhe tu.”
Escolher – palavra de conceito interessante. É algo que não faço desde Dezembro de 2006, desde exactamente o dia 12. Os planos que eu tinha para ver os meus pais felizes e descansados, gozando a sua reforma, tendo / conservando / criando novos amigos, foram por água abaixo.
Estou dependente deles. Imagino que, por trás dos sorrisos que me dão ás centenas cada dia que passa, está o sofrimento e consciência de que a filha única não vai durar muito. Eu acho que eles têm essa consciência, mas respeito o facto de não quererem falar disso. Eu também não quero, prefiro simplesmente pensar. Hoje é assim, amanhã logo vejo.
Pode ser que descubram qualquer coisa que mate o meu sarcoma sinovial monofásico fusiforme (ou fusicelular, conforme a escola de medicina). Entretanto vou andando.
Fiz de conta que era uma pessoa normal enquanto trabalhei e paguei os meus impostos. Tentei, e cortei (á força) o cordão umbilical bastante tarde.
Queria que os meus pais tivessem outros objectivos além de mim. Eu só queria viver a minha vida, sem ninguém á volta. Queria que qualquer escolha de companheiro não estivesse condicionada pelo resto da família, queria fazê-la livremente. No momento em que cortei o cordão não tinha ninguém nem tive durante anos.
Veio o enfarte do meu pai (no qual eu julgo ter tido muita culpa, ele é muito emocional, embora não o demonstre) e tudo o resto de seguida.
Haverá ligação? Serão ou poderão ser as causas meramente celulares/genéticas ou assim do género? Ou poderão estes males ter origem emocional?
Pois já sei, há milhões e milhões de pessoas a indagar-se acerca do mesmo.
Neste momento tenho quatro médicos a tratar de mim directamente e da minha “agenda”.
Os meus pais vivem em função de mim. Sou uma lapa que nunca quis ser. Diz o senso comum que ser pai/mãe é mesmo assim. Espero que seja, para que não lhes custe tanto. Eu cá não sei o que é ser mãe, nunca fui, com imensa pena, pois desejava nada mais, nada menos do que três rapazolas. Agora entrei oficialmente na menopausa, com toda a quimio que fiz até agora. A que está prevista para breve será a terceira, pode ser que “seja de vez”.
Gostava de recuperar os meus movimentos, pelo menos para fazer algo e não ser um peso tão grande na rotina da casa.
A casa dos meus pais lá está, vazia, como se tivesse sido abandonada. Arrumadinha, mas sem as almas lá dentro. A da praia…não tem uso, nem projecto de vir a ser utilizada. Tenho de fazer algo quanto a isso. E até o raio da bicicleta eu me lembrei de levar para lá. Talvez a ofereça a alguém, tal como a viola e a raquete. Coisas que fiz, mas que não voltarei a fazer quase de certeza, pois implicam força e habilidades que já não tenho.
Agora vou caminhar pela casa. Depois volto. Joka.


29 de Junho 2009

Afinal não voltei ontem.
Hoje foi um dia estranho.
Passei-o quase todo no IPO. Sendo eu (a minha coluna) um caso urgente, e aproveitando o facto de estar já lá a fazer a reparação da L5, acharam por bem os meus queridos médicos continuar já com a reparação da “D3 e margem”.
Assim, fomos para lá ao toque de aviso da doce Doutora da Radioterapia, chegámos, sentámo-nos á espera da minha vez de ir ao simulador. Desta vez era necessário, bem como mais tatuagens. Já tenho três colecções de tatoos, uma de 2007, feita para atacar o mediastino e não chegou a ser usada; a série para a L5 e hoje, fresquinhas, a série para a D3.
Bem, eu a ver que os meus papis iam desfalecer com fome e eu, em frente a um LCD sem som, a tentar descortinar o que se passava no programa da quatro, cheia de sono. Acabou o programa, começaram as notícias e, por volta das 13h40m chamaram-me. A equipa estava exausta. Eu era a última de um grupo de doentes que começava hoje tratamento. Notava-se porque as caras conhecidas resumiram-se a 3 ou 4 durante toda a manhã. (Começamos a ter colegas, é giro).
Lá fui, tirei a roupa, pois já sabia o que me esperava: as marcações. Nada de minhoquices, para a frente que atrás vem gente! Lá se fez o que era necessário, ganhei mais umas pintas no peito, com as quais pouco me importo. Fazem-me lembrar algo do género “Amor de Mãe”, aquelas do ultramar, mas com muito mais pinta.
Fomos os três almoçar a correr, quero dizer, eu fui tipo caracol-de-corrida. Mas consegui ir a pé até ao bar, depois pelo elevador para o piso 1, e daí subi pequena rampa e escadas…lá fui fazer o hemograma.
Voltámos para a Radioterapia e daí a pouco chamaram-me. As sessões vão ser no mesmo horário das duas últimas semanas, foram simpáticos. Desta vez terei o trabalho de tirar e vestir a parte superior da roupa que levar. As “batas” têm todas o velcro avariado e provavelmente vou ter alguma situação semi-embaraçosa, que espero dê para rir.
Como são só cinco sessões a 20 Gy, e os raios são emitidos de lado oblíquo e por trás, estou a contar não ter efeitos secundários maus, como esofagite e afins.
Para já, fui ali mudar o penso de morfina, o que faço de quatro em quatro, isto é, tecnicamente a cada três dias e meio, segunda á noite e sexta de manhã, sistema transdérmico que liberta 52,5 microgramas /hora.
Estou ligada a opiáceos e morfinóides. Se me falta algum destes medicamentos a coisa volta a ser brava.
Até lá tenho de ter cuidado com as minhas vértebras. Vou ter aqui “trabalho” para muito tempo.
Tenho de perguntar ao Xico como é que se faz quando temos de fazer xixi e a vontade não activa o sistema de expulsão. Ele já passou por tanta coisa (é colega), que lá terá os truques dele.
Para já, nada de coisas nem muito quentes, nem muito frias pelo esófago abaixo.
Amanhã é outro dia…dizem.


30 de Junho 2009

Olá…não sei a quem estou a dizer “olá”.
Hoje a minha mãezita parece cansada outra vez. É natural que se sinta assim: já acordou, cedo, depois de mais uma das suas noites dormidas a prestações. Não descansa nada de noite, e quando acorda é para ouvir, no silêncio da noite, se eu respiro, ressono, se estou a virar-me na cama, se… se… se…
A esta hora já me ajudou a tomar duche. Preciso de ajuda por não ter o equilíbrio a 100% (será que volta?), e não consigo dobrar-me de modo a poder esfregar dos joelhos para baixo. E como não consigo equilibrar-me só numa perna, também não a consigo erguer para passar a espuminha. Não sei como vai ser, mas é mais uma preocupação para a minha mami. Anda a aguentar tudo desde 2005. Em Outubro desse ano, o meu pai teve um enfarte e foi a mãe-guerreira que aguentou e tratou de tudo. Desde esse momento foi uma catadupa de acontecimentos de saúde, que vêm cansando e cansando.
Se eu pudesse escolher, desejaria que a minha mãe ficasse boa, dormisse bem e pudesse aproveitar agora um pouco da reforma. A sério que não é egoísmo tipo: se ela ficar bem, trata de mim e do meu pai. Não, não é isso. O meu pai está controlado com o desfibrilhador, pode fazer uma vida normal de aposentado viajante e apreciador de novas culturas e costumes. Isso está a fazer-lhes falta.
Eu sou a empata, e devia ser a rectaguarda, quem ia regar as plantas, certo?
Que merda de voltas dá este mundo!




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