quarta-feira, 3 de maio de 2006

Terceiro Fantasma, 23 de Dezembro de 1997



Mais uma vez adormecera. Era o primeiro dia a sério das férias do Natal. Agora não tinha alunos para aturar. Tinha combinado, por acaso, ir com uma amiga à feira que havia todos os dias vinte e três. Combinara ir buscá-la às nove e dez, pois a feira começava cedo. Eram nove menos cinco, e nem teve tempo para comer decentemente. Tomou um duche à pressa. Nem se penteou bem. Normalmente não ligava a essas coisas. Não se vestia bem, não gostava de usar maquilhagem, não ligava a mínima importância ao aspecto que tinha. Por isso tinha vinte e seis anos e não tinha namorado — pensava.
— Que se lixe! Estou de férias. — disse para as paredes.
Calçou umas meias de lã, vestiu umas calças de ganga, uma camisola esverdeada e um colete de lã. Calçou umas botas tipo tropa e pegou no "kispo". Saiu de casa e foi de carro até casa de Catarina. Bem, a Catarina era mais nova que ela, portanto, Beatriz esperou que Catarina pintasse os olhos, pusesse batom e escolhesse umas botas num armário com botas que nunca mais acabavam.
Lá saíram então, passava já das nove e meia. Passaram por um Multibanco, onde deviam parar, mas Beatriz ia distraída e, para evitar uma travagem esquisita, continuou. Pararam no Multibanco seguinte. Beatriz acabara de estacionar, quando passou um carro que estacionou à frente delas. Catarina quase gritou:
— Olha o Bruno!
— Qual Bruno? — perguntou Beatriz sem perceber.
— O Bruno, aquele de quem estás farta de ouvir falar. Está diferente... ai, mas é ele, anda, anda...
E saiu disparada do carro, enquanto Beatriz trancava as portas. Quando Beatriz chegou perto de Catarina, viu o tal Bruno, o famoso, o divertido e impecável Bruno de quem lhe haviam falado os seus amigos. Era alto, de olhos castanhos, com um cabelo escuro e forte, uma voz linda, vestia calças de ganga e um blusão vermelho. Ficou com cara de admirado quando Beatriz lhe disse que já ouvira falar muito dele.
Beatriz virou-lhe as costas e disse que ia levantar dinheiro. Bruno e Catarina continuaram a conversar. Iam todos levantar dinheiro. Bruno também passara um Multibanco pelo caminho, mas decidira ir àquele. Coincidência.
Foi um Bruno muito sorridente que se virou para Beatriz e Catarina e disse:
— Não querem tomar um café? Podemos ir ali, àquele. Se tiverem tempo, claro.
Quase que adivinhara os pensamentos de Beatriz: "Mas agora esta. Porra, já é tarde. De onde é que caiu este fulano? Tão simpático. Será mesmo verdade?"
Bruno insistia em olhar Beatriz nos olhos, mas ela esquivava-se. E iam conversando, sobre o que faziam, como estava fulano e beltrano...
Chegaram os cafés à mesa. Aliás, Bruno foi buscar os cafés, o que impressionou Beatriz: "Destes é raro ver".
Catarina com o seu descafeinado, Beatriz e Bruno pegam na chávena ao mesmo tempo e descobrem que nenhum deles põe açúcar no café. Beatriz assusta-se outra vez. São muitas coincidências juntas. É que ele também saíra de casa para ir à feira. Não, aquilo era demais. Beatriz tentou fechar-se na conchinha dela, mas Bruno voltava à carga, e Catarina começava a ajudá-lo.
Decidiram ir então à feira, antes que ela terminasse. Decidiram ir no carro de Beatriz, pois ela não ia entrar no carro de um tipo que não conhecia. Iriam os três, e Bruno deixou o carro num lugar mais adequado do que em cima da passadeira.
Enquanto ele foi arrumar o carro, Catarina começou a brincar com Beatriz.
— Ele gostou de ti!
— 'Tás parva ou quê? Ele nem me conhece — ripostou Beatriz.
— Estou a dizer-te que ele gostou de ti. Vais ver, vais ver.
— Só me faltava agora esta! — disse Beatriz, mas logo se calou porque Bruno chegou e pediu licença para entrar no carro.
Lá foram então, saltitando na carripana de Beatriz, em alegre cavaqueira sobre aquilo que Bruno fizera, fazia e com Beatriz a admirar-se com o fascínio com que ele falava das coisas que gostava. Parecia seguro de si, feliz, liberto e... atiradiço, embora bastante educado. Sempre delicado, sempre a pedir licença e sempre a fazer perguntas a Beatriz, o que ela achou estranho. Quem se conhecia ali e tinha assunto de conversa e coisas a recordar eram Bruno e Catarina.
Bruno ia à feira para comprar línguas de bacalhau e um presente para a afilhada. Catarina ia para comprar umas cerâmicas. Beatriz ia para comprar... cuecas. Mas agora não podia fazê-lo com um desconhecido de vinte e oito anos ao lado. Acabou por comprar meias quentes, umas pantufas e um casaco azul, que lhe ficou mais barato porque o vendedor era conhecido de Bruno.
Catarina desapareceu um momento, e Beatriz quase entrou em pânico. Ficara sozinha a ver pantufas com Bruno que ia fazendo perguntas sobre variadíssimas coisas. Aquelas variadíssimas coisas que nos mostram como pensam as pessoas, aquelas variadíssimas coisas que custam a dizer, pois sabemos sempre que quando nos são inquiridas, a intenção é bem grande.
Depois de umas voltas na feira, e de vários episódios em que Beatriz tentava caminhar ao lado da Catarina e logo lhe aparecia Bruno, voltaram ao lugar onde ficara o carro dele, junto ao Multibanco.
Aí, mais um assunto surgiu. Bruno comprara um telemóvel a um amigo, que lhe ficara baratíssimo, e andava às voltas com ele desde o dia anterior, pois a danada da bateria não encaixava bem. Beatriz comentou que o dela nunca tivera esse problema. Por acaso, até eram do mesmo operador. Catarina teve então a ideia que o pai dela ia ficar radiante por rever Bruno, e telefonou do telemóvel de Beatriz, para a mãe, a dizer que havia mais um convidado para o almoço. Bruno ficou atrapalhado, mas não seria delicado negar o convite. Pediu a Beatriz se ela não se importava de lhe dar o seu número, e ela um pouco a medo lá lho deu, e ficou com o dele. Ficava então combinado que Bruno o almoçaria em casa de Catarina, Beatriz ia a casa, fazer o almoço a casa e almoçar com seus pais, e depois, iria ter a casa de Catarina, acompanhada da sua roufenha viola.
Como já era um pouco tarde, apressaram-se nas despedidas, com Bruno sempre a rondar Beatriz, que levou Catarina a casa, para indicar o caminho a Bruno. Pelo caminho, Catarina insistiu com Beatriz, a dizer-lhe que Bruno estava a interessar-se muito por ela. Beatriz falou-lhe do medo que tinha, que as pessoas acabavam por fugir dela, que não "sabia andar naquilo", que tinha medo. Mas Catarina assegurou-lhe que Bruno era bom rapaz, sério e não ia ser parvo. Ela não tinha nada que fugir, nem tinha de se esconder. Devia deixar as coisas correrem. Chegaram. Mais uma vez se despediram, e Bruno insistiu:
— Mas apareces mesmo, não apareces?
Ao que Beatriz respondeu, sorrindo:
— Apareço. Às duas e pouco estou aqui.


Beatriz chegou a casa a correr, atrasada, mais uma vez, e começou a fazer o almoço para os pais. Quando chegaram, nem ligaram à narrativa da feira. Portanto Beatriz decidiu calar-se e ouvir todas as historietas do trabalho do pai e da mãe. Depois de almoçarem, foram embora, Beatriz arrumou tudo, e decidiu pentear-se. Mudou para umas botas sem lama, pegou na viola, enfiou-a no saco e foi, ansiosa e receosa até casa de Catarina.
Lá encontrou ainda todos à mesa, recordando velhos tempos passados em conjunto, terminando o almoço. O pai de Catarina saiu para o emprego, a irmã também, e ficaram Beatriz, Catarina, Bruno e a mãe de Catarina.
Bruno pensou que Beatriz sabia tocar viola, mas ela negou. Tentara aprender cerca de dez anos antes, mas deixara-a de lado por causa dos estudos e... da preguiça de treinar. Agora tinha um novo livro com canções e acordes e já passara algumas horas a tentar tocar de novo, com a ajuda de Catarina. Então, com uma concertina e duas violas, passaram parte da tarde a cantar, tocar e com Bruno a tentar personalizar o atendedor de chamadas, que ficou com os periquitos de Catarina como som de fundo. Claro que Bruno se desenvencilhava muito bem sozinho a fazer tal tarefa, mas insistia sempre na ajuda de Beatriz, que por acaso não percebia nada daquilo, porque o telemóvel era de outra marca e tinha opções diferentes.
Catarina ia piscando o olho a Beatriz, fazendo-a corar, porque se sentia cada vez mais cercada. Assim é que nunca lhe tinha acontecido. Tanta coincidência junta! E não havia maneira de Bruno desistir. Ela olhava-o, quando ele não se apercebia, e tentava encontrar-lhe defeitos à primeira vista, mas não conseguia.

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