quarta-feira, 3 de maio de 2006

Segundo Fantasma, Setembro de 1993


Beatriz já não podia mais. Não aguentava aturar António. Estavam a terminar o curso na faculdade. Até nisso ele punha defeitos. O curso dele era melhor, mais produtivo e mais importante do que o dela.
Conheceram-se, estava ela no segundo ano do curso. De início, encontravam-se no autocarro, por acaso. Um dia, ele agarrou-a e beijou-a em plena rua. Beatriz ficou assustadíssima. Nunca lhe acontecera tal coisa. Nunca nenhum rapaz lhe fizera isso. As paixões dela normalmente ficavam com ela mesma. Os rapazes por quem se interessava eram puramente amigos e não viam nela nada mais que uma amiga. Durante o resto do curso, a relação foi-se alterando. Namoravam. António dizia-lhe que ela podia telefonar mais vezes do que ele, pois era filha única. Vivia a cinco minutos de casa dela, mas não se dava ao incómodo de ir até lá. Achava-a quase perfeita. Mas na cabeça dele, Beatriz tinha um defeito enorme e terrível (mais um): fumava. Eram também de religiões diferentes, o que veio acordar em Beatriz os valores que aprendera na infância, e passou a defendê-los com mais garra. Não admitia a ninguém que lhe deitassem o mundo abaixo só por não ser quem os outros esperavam que ela fosse. Os defeitos e acusações foram aumentando. Ela esperava que isto se devesse à tensão do final do curso. Mas não. Um dia, depois de almoço, ele disse-lhe:
— Sabes, é engraçado. Agora que estamos a acabar o curso, os meus colegas falam dos planos deles.
Ela escutou atenta e desconfiadamente, e para incentivar a conversa, disse:
— Ai sim?
E António continuou:
— É! Todos falam da namorada, que é a mulher da vida deles, que vão casar e essas coisas todas.
Ela teve então a certeza daquilo que queria e disse-lhe:
— Tu estás a dar essa volta toda para me dizer delicadamente que eu não sou a mulher da tua vida, não é?
Ele concordou, mas acrescentou ainda:
— Bem, é que... ainda não tenho a certeza.
Beatriz disse o que lhe ia na alma:
— Bem, António, se ao fim de dois anos e uns meses, ainda não tens a certeza, também nunca mais vais ter.
— Porquê? — perguntou ele admirado.
— Porque durante este tempo todo, tiveste a possibilidade de estar comigo, e não estiveste, porque não quiseste. Agora, cada um tem de arranjar emprego e nada nos garante que vamos ficar juntos na mesma cidade. Daqui para a frente vai ser complicado, e se ainda tens dúvidas, estamos mal.
Ele ficou calado, amuou. Depois passou-lhe. Passava-lhe sempre, sempre que se lembrava de sexo. Mas Beatriz evitava-o. Tinha dores de cabeça, estava doente, estava enjoada... até que lhe disse na cara que não queria. Para António, o sexo era algo que se podia tomar a todas as horas, em qualquer lugar, com água, com vinho, mesmo como "cura" das discussões. Para Beatriz, era algo de muito precioso, que não devia ser dado. Devia ser partilhado, chorado e construído a dois, como símbolo de um amor grande e pleno. E não era o caso. Nunca fora.

Beatriz começou a trabalhar. Como ia iniciar uma actividade para a qual só fora preparada teoricamente, socorreu-se da ajuda de pessoas amigas que sabiam mais. Deu por si a passar melhor o tempo a conversar com um amigo mais velho que ela. Ele aceitava as pessoas como elas são, não lhes punha etiquetas nem defeitos. Começou a pensar que a sua relação com António não tinha mesmo saída. Ele dizia-lhe que não podia viver sem ela, mas que ela conseguia magoá-lo muito, e muitas vezes. Isso também ele fazia a Beatriz.
António foi para outra cidade fazer um curso de especialização. Sorte a dele! Tinha um dia livre que coincidia com o de Beatriz, além dos fins-de-semana. Mas ele não ia a casa dela, nem lhe telefonava quando chegava. Passava esses dias livres com a mãe, ou às compras, sem sequer a convidar para um café que fosse.
Beatriz decidiu que não aguentava mais. Disse a António que precisavam conversar a sério. Ele perguntou-lhe:
— O que foi, chateaste-te com alguma coisa?
Beatriz ficou petrificada. Ele parecia alheado de tudo. Não compreendia. Para ele estava tudo bem. Quando lhe apetecesse, telefonava ou aparecia, ou punha defeitos, ou desdenhava do trabalho dela e ainda fazia um choradinho por sexo? Não!!! Beatriz não queria uma vida assim. António não sonhava, não vivia, era uma pessoa apagada, introvertida, não gostava de conhecer coisas novas, estagnava com demasiada facilidade.
Ela disse-lhe que assim não conseguia continuar, não era feliz. Ele apanhou um choque, chorou, implorou e finalmente reagiu. Disse a Beatriz para sair do carro. Estavam a cinco quilómetros de casa de Beatriz. Ela recusou-se a sair e disse-lhe que a devia levar a casa. Ele levou-a até ao cimo da rua. Beatriz entrou em casa à hora de jantar, ouviu um sermão dos pais pelo atraso, e depois informou-os de que "António já não há mais".
Ele telefonou-lhe no dia seguinte, no outro e no outro, mas Beatriz disse sempre o mesmo: "NÃO!"
O choque que ele apanhou no dia em que terminaram deveu-se ao único recurso que Beatriz conseguiu, para que ele a deixasse em paz: a mentira. Ela viu que ele não ia aceitar que ela pura e simplesmente já não gostasse dele. Então contou-lhe uma história. Disse-lhe que tinha conhecido outra pessoa, que se estavam a entender e que ela se sentia melhor junto desse "outro", do que junto de António. Ela soube que o magoou. Magoou-se a si própria também. Não havia nada além de uma amizade, troca de ideias, conversas e algumas pizas pelo meio. E ele acreditou. Ela sabia que António ia ter raiva dela, chamar-lhe nomes e tudo o mais que um homem ferido no seu orgulho de macho faz. Mas era a única saída.

Daí para a frente, Beatriz nunca mais soube nem quis saber nada de António. Levou o seu trabalho a sério, como aliás fazia parte da personalidade dela. Tinha os seus amigos e amigas. O "tal amigo" ficou realmente um amigo. Um dia envolveram-se demais e chegaram à conclusão que era um erro. Ele não abdicava da vida que levava: boémia, sem compromissos (excepto um que ele deliberadamente não contara a Beatriz), com muita variedade de companhias femininas. Ele tentou esconder-lhe isso, mas Beatriz descobriu. Aquele "caso" (se assim se pode chamar) deles, era segredo, pois havia amigos comuns que os iriam condenar se alguma vez sonhassem, a começar pelo facto de ele ser bastante mais velho que Beatriz. Beatriz decidiu que não queria viver assim. Então desapareceu do mapa. O "tal amigo" nunca mais a viu, e ela não teve pena nenhuma. Ficou furiosa consigo mesma por ser fraca. Jurou a si mesma nunca mais acreditar em amigos ou qualquer espécie de homem.
Tudo isto terminou em 1995.
Beatriz continuou a sua vida.

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