terça-feira, 9 de maio de 2006

O Primeiro Sonho


Como gostava de escrever, pois assim ninguém lhe dizia que qualquer ideia era disparate ou estava desajustada das ideias dos outros, Ana começou a inventar pessoas em vez de personagens. E começou:


24 de Fevereiro de 2000
“Mas, lá dentro como é? Já me perguntei isto muitas vezes. Por vezes julgo estar a ver-me ao espelho. Mas pode ser imaginação minha, claro, só pode ser. O desejo de ver, nos outros, qualidades e valores que apreciamos não passa disso mesmo - um desejo, uma mentira ou irrealidade, conforme a moda filosófica do momento. Ele fala de si, mas só daquilo que se vê, não falou nunca do que sentiu ou como sentiu, ou mesmo se sentiu. Afinal é o que eu faço. Logo, não tenho o direito de afastar alguém assim, pois estaria mais uma vez a afastar-me, a afastar o ser que habita dentro de mim. O meu ser interino foi já culpabilizado, humilhado, estigmatizado por quem eu julgava amar. Que palavra tão gasta e adulterada esta!
A sociedade conseguiu levar à extinção o melhor de tudo isto: o Amor. Ninguém sabe o que é. Os poetas tentaram defini-lo, a esse conceito inventado pela civilização. Ah. Também não tenho encontrado muitos vestígios desta... (a tal civilização).
Não comunicamos, não exprimimos ideias nem sentimentos (copiamo-los de um imenso catálogo de opções disponíveis e vendáveis na terriola X); o pouco que nos separa daquilo que conhecemos do Homem pré-histórico é um punhado de maquinetas, a pilhas, a electricidade, a ar, a sol, a... nada.
Vivia-se em cavernas, hoje abrigamo-nos debaixo do edredão fofo e capa bonita a condizer com os cortinados; caçava-se, hoje coleccionamos latas e embalagens com coisas comestíveis; olhava-se o céu, hoje reduzimos o céu à “tele-miséria” de ecrã plano, “stereo surround”, mas, do mal, o menos,... a cores! Procriava-se, hoje inventam-se desculpas para não nos conhecermos sequer, quanto mais entregar o corpo à transpiração da paixão, dessa ligação etérea de almas que há quem diga existir num orgasmo de quem se ama. É ela que não é virgem, é ele que bebe e não tira as peúgas, é ela que é boa rapariga com pais em casa que exigem respeito (ou normalidade?), é ele que diz não ter telefonado por causa da bateria do telemóvel, ou mudou de ideias quanto ao casamento, mascarando a falta de tomates para o compromisso com a desculpa esfarrapada do exemplo de mau casamento da irmã.
Se ela é filha única... não tem salvação nesta sociedade portuguesa com ambições de europeia. Se vive com os pais, deve-lhes satisfações, logo não pode jantar fora de casa quando lhe apetece, ou quando apetece a sua excelência o “pseudo-namorado”. (Pois, pois, hoje ninguém namora, tudo vai andando! De preferência no anonimato que causa as seguintes duas sensações:
a) Ele acha que não podia ser melhor, está livre na mesma, não deve respeito a todas as pessoas que conhecem a suposta namorada;
b) Ela acha-se interessante e misteriosa na primeira semana, depois começa a ver as suas próprias amigas a galarem o suposto namorado, causando-lhe uma certa dor e peso na fronte, e finalmente sente-se como um penico velho de esmalte a que só se recorre quando a autoclismo avaria ou o único WC está ocupado).
Até pode ser sempre ela a telefonar pois parece que há mais recursos económicos. “Até pode comprar um vibrador meus caros senhores, ou vocês acham que são indispensáveis?”, era mau se as mulheres desatassem a dizer isto aos homens, não era?
Se estudou, ou simplesmente pensa, é potencialmente perigosa e traiçoeira do ponto de vista masculino. E nem sequer é preciso que seja inteligente para ser vista como uma ameaça! Aqui devo pedir desculpa aos Homens que até hoje não conheci, mas estava a referir-me aos garotos crescidos que me passaram pela frente, ou então ao “ego” que eles me deixaram conhecer.
Se ela tem iniciativa (sem falar de iniciativa sexual) é capaz de trair o homem, pois parece estar sempre assustadoramente dois passos à frente.
Homens e Mulheres não podem ser iguais, só podem aspirar a ser complementares. Convém que não esqueçam o respeito pela individualidade, e aquela margem de cedências necessária a qualquer relação a dois, seja no Amor, seja no Trabalho, seja na feira!
Feira... de vaidades, de falsismos, de vernizes estaladiços, de recheios facilmente adulteráveis quando expostos a condições exteriores adversas.
Se a menina é bonita, já ganhou. Se veste bem, óptimo, vai dar um lindo enfeite. Se se esgana a trabalhar já é mau, deixa de estar disponível para sua excelência utilizar. As pessoas não se utilizam. Tal como as flores aprisionadas em bonitos vasos, precisam da água e carinho, de ajuda para eliminar as ervas daninhas, que lhe refresquem a terra e lhe dêem ar e sol. Não ao mofo. Não à ausência.
Eu não nasci para viver sozinha. Mas às vezes os outros incomodam-me. Não todos, só aqueles que não me deixam ser eu. Depende dos dias.”

01 de Março de 2000

Não me dá troco. Também não tenho nem jeito nem artifícios para o provocar. Há coisas fáceis de fazer, isso há, mas considero-as reles.
Será que sofre do mesmo mal que eu? Deve ter o “Síndroma do sabonete molhado”, é uma daquelas pessoas que nos escapa para conversar, por exemplo. Viro-me dois segundos para um lado, quando volto... puf! Já fugiu. Dá-me vontade pela primeira vez em muitos anos de fazer daquelas perseguições do tipo “Olá, então por aqui?”, depois de passar duas horas à espera em local específico, crítico e mais ou menos certeiro e sei lá que mais. Mini-saia não uso, não me favorece, as meias estão caras e fico desconfortável. Agora esperar que quem por acidente aterrou no mesmo local que eu, sinta uma irreprimível e vitalícia paixão por mim, bem... acredito que antes disso veja uma vaca a voar e fazer quatro “loopings” seguidos!
Os homens olham em primeiro lugar para as pernas, depois para o traseiro e depois para as mamas. A seguir vem a cara, recordação que facilmente se esfuma. Coração, só vêem o da mãe deles. Ora vamos cá pensar. O que se vê desde as pernas até ao cabelo? Roupa!!! Não tenho jeito para a escolher, prefiro gastar dinheiro em livros e aproveitar o tempo da maquilhagem para dormir mais, no Inverno, e para ouvir os passarinhos a cantar no canavial, no Verão.
Eu sou mesmo estúpida. Acho que fui educada assim, ou talvez não. Todas as pessoas bonitas que conheci na infância e adolescência eram bonitas porque eram endinheiradas. E grande parte delas bastante arrogantes e xenófobas para o meu gosto. Por isso, o meu subconsciente continua a associar involuntariamente (na maioria das ocasiões) o bom aspecto e roupa de bom corte à tacanhez escondida por trinta camadas de verniz. Assim, vejo uma montra e desisto, a não ser que se trate de uma livraria, claro.
De qualquer modo, continuo preocupada comigo mesma. Acham normal que o meu melhor amigo seja o meu carro?”


04 de Dezembro de 2000

“Como o dia foi estúpido! Como, aliás, vem sendo regra nos anos mais recentes da minha curta vidita, decidi pensar em coisas boas: tu. Nunca vais ler isto. Provavelmente não vou ser suficientemente esperta para chamar a tua atenção, ou então vais ser suficientemente esperto para não me dares atenção! Só digo isto porque ninguém gosta de derrotistas, como eu sou, embora não pareça; mas como o principal são as acções ¾ para que os outros nos avaliem e entendam; e as minhas acções são poucas... lá vou eu apanhar outro balde de água fria.
Afinal, tu és mesmo quem eu penso? Acho que sim, ou pelo menos andas lá perto. Que olhinhos queridos e despedida carinhosa na quinta-feira. Era da chuva, da gafe ou mesmo por mim? O pior é que já muita gente julga que há efectivamente algo... e não há! A minha pena vai toda para o facto de “não haver”, não para o facto de “muita gente” pensar. Gostava de conseguir exprimir o que sinto, mas é difícil quando se sente mesmo. Já dizia o outro: “é fingimento”. Quem só escreve fá-lo melhor do que quem sente e escreve. Esses, nunca ninguém os entende. O que eu devia fazer era agarrar-te e dizer-te na cara o que penso. Ocasiões? Não há. Arranjá-las! Como? Não sei. Nem sei sequer se seria capaz. Se bem que conhecendo-me como me conheço, se me dá um repente... aqui vai disto, e depois, para desligar é uma chatice. Ainda algum dia fico famosa e alguém fica muito rico à minha custa. Vê só o sucesso do Livro do Desassossego! No fundo, ninguém o entende, todos conjecturam, estuda-se, mas... que raio queria ele dizer? Um dia destes rapto-te. Quero saber como és fora daqui, fora da farda, quais são as tuas piadas. Acho, no entanto, que para ti sou boa colega e “um amigalhaço”. Ora porra, não era bem isso. E lá voltamos ao meu velho problema: a dificuldade que eu tenho de aproveitar o pouco que me resta da frescura e piada dos vinte anos (já lá vão dez! deve ser por isso). Ainda me lembro de vestir uma saia e collants pretos e eles ficarem a olhar. Agora é mais por causa das meias opacas mal combinadas com a saia e as botas rasas. Coisas da vida. Canso-me a trabalhar para ter uma vidita tal-ou-quê e depois descubro que não tenho disponibilidade nem para o tal nem para o quê?! Pode ser que aos oitenta anos eu escreva um tratado monumental sobre a “arte de sobreviver solteira em Portugal” ou “a melhor maneira de evitar o sucesso”. Ena pá, arranjei um título porreiro. Só falta tudo o resto.
Só te queria a ti, mesmo que adormecesses no sofá, com o jornal em cima dos joelhos, mesmo que ficasse até às tantas da matina à espera que acabasses o trabalho. Não consigo deixar de pensar em ti. Que estupidez! Ou não? Será isto saudável? Sabes que há anos que ninguém me conseguia distrair como tu o fazes: eu perco papéis, eu esqueço-me dos compromissos, fico horas apática, de boca aberta como se tivesse tido uma paragem cerebral a imaginar como seria se... partilhasses o teu IRS comigo. Atenção, estou mesmo a falar de impostos. Isto de ser solteira não é rentável neste país. Pagamos para todos os desgraçados de espírito (“piolhosos”), como eu lhes chamo) e nem sequer temos a cristã satisfação de estar a ajudar quem precisa e pensa. É triste.”


06 de Dezembro de 2000

“Bem, triste sou eu. Um rico e belo exemplo de apatia quase todos os dias. Será que tu até gostas um pouquinho de mim? Ou toleras-me? Ou és tão atado como eu? Acho que vou atacar-te num destes intervalos. Como? Não faço a mínima ideia. Mas como costumo safar-me de improviso e Deus é grande... olha, logo se vê. De qualquer modo seria tipo “guarda-nocturno e mulher-a-dias”.

Pois é, caro leitor ou leitora, e ela não passava disto. Esta nossa amiga, apesar de não a conhecermos de lado nenhum, chama-se Ana, tem 29 anos (falta menos de um mês para fazer trinta), um veículo automóvel em vez de um carro, vive em casa emprestada e está ligeiramente desencantada com o emprego (ou pseudo-emprego) que tem.
Beatriz tem tido a imensa habilidade de estar sempre a leste de tudo o que lhe daria jeito agarrar com as duas mãos: um namorado do liceu cujo pai tinha uma empresa; o da faculdade que acabou por ser mestre e professor assistente numa universidade; um maluco que fugiu e foi a sorte dela; e agora... encalhou. Deixou de acreditar.
Todos os santos dias são iguais. Acorda, olha-se no espelho e fica com mais um trauma para o resto da vida:
¾ Os meus dentes são tortos, caramba... E olha, outra borbulha, e no meio da testa, como se até fosse possível eu ter um par de cornos! Bem, vamos lá ver se consigo disfarçar esta desgraça. Qualquer dia morro de asfixia debaixo destes cremes todos. Detesto isto. Aqueles anúncios são estúpidos, aparece sempre uma mulher perfeita a anunciar cremes e champôs milagrosos. Que belo efeito, não é? Pois, não precisam de arranjo!

E continuou a falar sozinha enquanto se vestia, naquela manhã cinzenta de Inverno, preparando-se para ir para o seu emprego. Engoliu a muito custo uma torrada e uma chávena de café. Gritou um “até logo” aos pais (com quem vive) que andavam algures pelo quarto, ouviu a resposta e saiu. Contornou o prédio, carregada com a pasta, mais um saco com livros e o chapéu de chuva, num equilíbrio periclitante e escorregadio até alcançar o portão da garagem. Abriu-o e no momento em que pensava recuperar a circulação na mão esquerda, descobriu que ia gangrenar, pois não encontrou as chaves do carro no momento oportuno, para o destrancar e atirar com aquele peso lá para dentro. Pois, é que essa história de portões electrónicos ou eléctricos, sei lá, e fechos com comando, não são para “profes”. Ah, pois não. Depois de dizer quatro palavrões, sentiu-se bastante mais aliviada, até porque, ao mesmo tempo, deixou cair tudo no chão. Raios! Eu tinha uma disquete dentro da pasta e a caixa dos óculos no saco! Deixa ver... acho que está tudo inteiro.”

E lá foi ela conduzindo alegremente a ouvir aquela estação de rádio em que pessoas brincalhonas tentavam alegrar as manhãs de milhares de encalhadas e encalhados como Beatriz, saltitando de banda sonora em banda sonora, de alcatrão em alcatrão... “sim, o problema não são os buracos nas estradas, são aqueles pedaços de alcatrão, quais verdadeiros himalaias, que insistem em dar valentes cacetadas nos pneus. E, já agora, porque será que há sempre gente que insiste em ter uma alergia tremenda aos passeios e caminha pela faixa de rodagem? Será porque também há gente que ainda não percebeu que deve conduzir pela estrada fora? Ai, não vai a conduzir. Olha, está parado em cima do passeio. Ah, camelo! Não se abre a porta assim! E são as mulheres que não sabem conduzir? Seja, mas sabem parar!
Que bom, o meu carrito acabou de apanhar com uma chapada de água do viaduto superior. Que lindo pára-brisas que eu tenho. Que alga será esta aqui à minha frente? Por sorte, não ia de janela aberta. Isto de vidros eléctricos até é giro, é cá um abre e fecha! Mas estou a perder o músculo do lado esquerdo. Eu fazia imenso exercício a abrir e fechar a janela do meu lado, e alongamentos a abrir a do lado direito. Paciência,” pensou encolhendo os ombros, “não se pode ter tudo.”

Quem passava podia vê-la a gesticular e a falar sozinha ao volante, só pessoas com grande capacidade de não preconceituar achariam que ela tinha um telemóvel com alta voz! Perto de noventa e oito por cento dos outros condutores achariam simplesmente que ela era louca.

“Antes fosse, se eu fosse mesmo louca acabava por ser muitíssimo bem tratada, teria desculpa para praticamente tudo. Mas tenho de fazer este “teatrinho da vida”, trabalho que não é pago, tenho de me comportar decentemente todo o dia, com os putos todos a pensar que ser “profe” é bom e dá dinheiro. Nem consigo pensar em prendas de Natal. Isso recorda-me que vou passar mais uma quadra hipocritamente bondosa em sofrimento... de ainda não ter feito nada da minha vida. Oh, que grande merda! Mas porque é que há sempre um esperto que faz disparar o vermelho do semáforo? Era só ler “Velocidade Limitada – 50”, bem, pensando melhor, até são nove sílabas complicadas e um número relacionado com dezenas. Pois é, é muito complicado de entender... em especial se passarmos a cem à hora, ou se lê mais depressa ou... trava-se na curva como ele fez! Enfim, safou-se. Eu não devo ser deste planeta.”

E chegou à escola. Estacionou, saiu, abriu a mala e debateu-se novamente com o facto de ter o hábito de levar a casa com ela para todo o lado. Nesta altura, já tinha o guarda-chuva de reserva enfiado no dicionário e um marcador a sair do capuz do casaco de fato de treino que habitava na sua bagageira dois dias por semana. Lá conseguiu organizar-se, fechou a porta e o gato de peluche com cara de poucos amigos ficou a balançar e a olhar fixamente para ela com ar esgazeado.
- Que foi? Tu também?
- Olá, bom dia -uma voz acordou-a e lembrou-lhe que começava agora o teatro. Era uma colega mais velha, perfeita melga que se metia em todas as conversas, quer elas fossem no início, meio ou fim.
-Então como vai? -Disse Ana, arrependendo-se imediatamente de ter formulado uma questão. Estava sujeita a ouvir um relato interminável da sua bendita colega. Mas não, esperou, esperou e... Nada.
Melhor, pensou Ana.
Caminhou com cara alegre até à sala de professores, tentando não dar ares de desabar a qualquer momento. Entrou.
- Bom dia.
- Bom dia.
Largou as suas coisas e foi até à reprografia. Óptimo, a máquina fotocopiadora avariou novamente. Melhor ainda, ainda não depositaram os ordenados. Nada melhor para começar o dia. Se houvesse Prémio Nobel do Azar, Ana ganhá-lo-ia.
Eis então que ela olha para a porta, enquanto se dirigia para a sala de professores e fica estática. A sua pulsação aumenta, tem calor, tem frio, tem comichão na planta dos pés, sente picadas nos joelhos e sente as rótulas aos saltos. Que horror, que sensações, tantas, todas juntas, assustam-na estas coisas que não têm lógica para pessoas lógicas. Mas porquê? Que raio.
“Estou estupidificada...”
- Olá, bom dia menina.
-Bom dia -respondeu Ana com a voz clara de mais. Ele! Oh, estúpida, porquê a admiração? Ela trabalha cá. Ora essa. É lógico que venha cá! Estava de fato cinzento-escuro, o que lhe ficava melhor, camisa cinza azulada e gravata azul escura com risquinhas vermelhas, ou pintas, sei lá. Com aquele ar descontraído de quem veste um fato e põe gravata mais facilmente do que ela conseguia pôr os collants de manhã! Bem barbeado, cabelo certíssimo, sapatos a brilhar e... telemóvel desligado, como sempre. Mas era o sorriso, quase cândido e por isso mesmo, para Ana, revelador de ter chegado àquela paz interior que ela precisava, tretas. Ele tinha lá chegado, mas por baixo daquela capa, que aliás era natural, havia um turbilhão de vivências, de coisas boas e más que preencheram todos os cantinhos do seu cérebro e o deixaram naquele ponto de serenidade que Ana tanto desejava para si (entenda-se a serenidade, claro!). Ana era mais como o seu computador portátil, daqueles que se vêem encaixotados e são sempre uma surpresa. Quando trocou o seu mostrengo a que chamava computador, mudou precisamente para um portátil, caro, mas extremamente útil para trabalhar em qualquer sítio, o que aliás lhe veio estragar fins de semana completos, quando antes disso só lhe estragava os domingos à noite, em que ficava de castigo muitas vezes a imprimir documentos à pressa. Pois ela lá conseguiu instalar os programas que precisava, mas escapou-lhe um pormenor. Bem, já que ninguém nos ouve, só no terceiro dia a explorar o bicharoco é que descobriu que devia configurar o monitor para que a imagem ficasse do tamanho normal. Mas a grande vergonha dela era que não encontrava alguns mega bytes de memória. Ficou aborrecida. Por várias vezes pensou nisso, mas antes de terminar a garantia de um ano, imagine-se, lá teve coragem, avançou num menu desconhecido, fez clique e... voilá, descompactou o segundo disco. Ali estava ele. Vergonha, não é? Ana fez isto com o computador, mas ela continua com um disco compactado. Tem muito medo de fazer clique. Está a desperdiçar memória, está a poupar o processador e não faz explorações. Que seca, é verdade.
Entrou na sala de professores e lá estava ele, sentado, rodeado de papéis e pastas.
- Oh pá, estou aqui... perdido! ¾ Apelou ele a Ana, que pensou, perdido? Oh, meu querido, eu agarro-te, eu oriento-te.
- Sim? O que te aconteceu? ¾ Inquiriu Ana.
- Olha, ando sempre a queimar, deixo juntar muitos papéis e depois é isto.
E parou-lhe o cérebro outra vez, e lá vem a arritmia novamente, oh, que tragédia!
Eu estou a aparvalhar. Isto não é normal, deixa-me cá beber um copinho de água fresca. E é melhor fumar um cigarrito também. Como é que ele será sem roupa? Com o desporto que ele pratica, deve estar em boa forma, deve sim. Eu já estive melhor, por acaso, mas ficava boa num instantinho.
E foram conversando sobre o que tinham feito, sem lhes ocorrer nada de especial, sob o olhar de alguns colegas que já os imaginavam em ardentes cenas de sexo, o que deixava Ana fula. O facto de ser uma das poucas professoras solteiras e novas daquela escola, não costumava ser muito agradável. Estavam sempre a inventar-lhe arranjinhos. O pior de todos tinha sido com um colega dela, feio, casado, que cheirava mal e era parvo. Dessa vez foi avisada que a história correra pela escola e curioso ou não, ninguém acreditara. Este foi o único ponto agradável da mesma. Ao menos que tivessem inventado algo mais interessante. “Mas, esquece. Agora, o que é que eu faço aqui com este pão? Vamos lá analisar a coisa. Ri-se para mim, é simpático comigo, já me deu boleia, já me levou a... almoçar. (E o que é que isso tem?) Enfim, um verdadeiro cavalheiro. E provavelmente é só isso mesmo. Por outro lado, a que outra mulher ele fez isto? Cá na escola... a ninguém. (Já tinham saído todas) Mas claro que terá as suas amigas, se bem que sei que não tem namorada. Estou a pensar como se tivesse metade da idade que efectivamente tenho. É uma vergonha. Mas de qualquer modo continuo a não perceber porque é que não telefona, por exemplo, ou avaria qualquer coisa, ou perde mesmo qualquer coisa e não precisa de mim e, quando falto a um treino (treinamos desportos diferentes no mesmo lugar da cidade) me vem dizer no dia seguinte: “Ontem não te vi, não foste?” Aí, fico com a nítida sensação de que além de ter perdido um treino que não me sai propriamente barato mensalmente, ainda perdi uma oportunidade que, chego agora à conclusão, é somente o que ele precisa. Claro que isto é pura imaginação. As mulheres é que têm tendência a baralhar-se com o que julgam que os outros pensam. Dentro da escola, confiança a mais dá mau resultado, os outros vêem e imaginam em demasia. Ora porra! E não tenho direito a vida privada? Será que fora da escola é mesmo diferente? Não deve ser. Acho que era capaz de sair a correr da cama para ir ao treino, ou para preparar a súmula seguinte, deixando-me lá sozinha. Não que não seja gentil, mas... não consigo imaginar que algum dia me levasse a sério. E sendo esse o caso, não quero gastar as minhas energias a lutar só para que alguém repare na minha presença. Habituou-se a que eu estivesse disponível para desenrascar papeladas, disquetes e coisas que tais. Um amigo porreiro daqueles a quem nem é preciso telefonar, pois não ficam tristes com essa falta de comunicação.”

- Bem, com a Protecção Civil de prevenção por causa dos ventos ciclónicos, eu bem que podia ter trazido um saquinho com roupa e dormia cá na escola. Sempre poupava o susto da viagem. De qualquer modo só costumo ir a casa tomar banho e dormir. -gracejou Ana, olhando-o.
- Pois é - ele sorriu - eu também, é praticamente isso.
Os demais colegas continuaram a comentar o assunto, julgando acerca dos avisos que poderiam causar algum pânico, referindo inclusive que vários alunos estavam receosos da “tempestade marcada para as seis”. Ana pensava na sua casa, onde chegaria pelas oito da noite, depois de vinte minutos sob uma chuva feia e triste, já de noite, com a sua miopia e astigmatismo que a fazia ter pavor de conduzir com chuva mesmo de dia. Chegava a tremer por vezes, enquanto conduzia. Assustava-se mais com o pensamento de que podia ir a oitenta, estar a chover a acertar num camião. Nunca conseguia afastar este pensamento da ignição.
E quando chegasse a casa, depois de mais uma sessão de troca de impressões com as escovas do pára-brisas, vestiria o papel de filha, profe que chega a casa arrastando o seu génio dentro de uma. Se aquela pasta falasse... contaria que ela era muitas vezes posta de lado no recreio porque não tinha uma Barbie, e que jogava futebol com os sapatos de verniz porque achava que os rapazes eram mais normais do que as raparigas (que até desenhavam princesas gordas e de cabeça achatada!) A pasta contaria também que Ana teve uma paixão assolapada por um colega de turma que dizia “sss” a mais. A pasta contaria também que Ana não gostava do clima da faculdade, em que aqueles que ficavam horas a dar graxa aos professores ganhavam algo com isso. Ela ficava horas a dar graxa às fotocópias de exemplares em francês para aprender morfologia da língua portuguesa! Foi essa pasta que ela insistiu em continuar a usar no seu emprego. E não me admirava nada, se na reforma, ela continuasse a usá-la para transportar os seus livros de cabeceira, que costumam ser tantos e tão variados, que parecem demolir a própria mesinha de cabeceira. Aliás, quem entrar no seu quarto deduz que está ali um móvel porque se vêem gavetas à frente (nas quais também cabem uns quantos livros) e, em cima, vê-se o topo de um arranjo de flores e de um candeeiro.
Quando chega a casa, põe uma carita tal-ou-quê e diz “Olá, já cheguei”. A palavra “já” que lhe sai da boca invariavelmente tem subjacente os olhos julgadores da mãe que sempre foi de poucas liberdades. Ana tem sempre presente e a funcionar um despertador que em vez de apitar, diz, com a voz da mãe, com um som que ecoa no infinito do cérebro esvaziado de Ana: “Já fizeste outra vez...sou sempre eu... então, só agora?” E Ana consegue nem sequer se divertir só de pensar, à saída de casa, que qualquer que seja a hora da saída, para a mãe, já devia ser sempre e impreterivelmente hora de entrada! E porque é que Beatriz continua assim aos quase trinta anos? Desculpas há muitas, mas a razão principal é que nunca gostou de magoar ninguém. Tem medo de magoar, tem pavor de magoar, porque sabe como é ser magoada.
Pois então, como desistiu de jantar a horas, lancha aquilo que tem na vontade, toma um duche, faz de conta que se penteia, veste o pijama e o roupão, prepara a roupa para o dia seguinte, prepara últimos detalhes das aulas e se não tem nada que corrigir, afunda-se num cantinho do sofá, acompanhada da almofada, da manta e do amigo telemóvel que passa os serões a consumir a bateria em vez de fazer aquilo para que foi inventado. E lá fica tentando decidir se lê ou se vê pedacinhos dos programas de televisão. Também, ou vê filmes que já viu uma dúzia de vezes, ou programas que não lhe interessam. Os pais costumam adormecer no sofá, e ela também. Sempre é melhor desligar da realidade do que ficar à sua mercê.

Tem acordado estupidamente cedo, para ficar a ver os minutos a passar no relógio, minutos vermelhos na escuridão. Anos que passam na sua vida escura.
O passatempo preferido de Ana é observar as pessoas. O sonho era saber desenhar, captar os estados de espírito das pessoas, saber o que lhes passa pelos olhos, mas do lado de dentro. Só tenta. O resultado nunca a satisfaz. Provavelmente é perfeccionista e nunca na sua vida estará satisfeita com nada.

- Ó menina, tu almoças cá na quinta-feira? Sabes o que é a ementa? Eu passei ali e nem vi. ¾ perguntou ele na terça-feira de manhã.
- Olha, estava a pensar que tenho duas horas de almoço, porque a turma do 12º C está na visita de estudo - respondeu Ana, esperando ansiosamente a sugestão que se seguiria.
- Ah, olha, então almoço contigo.
- Queres então que marque almoço para ti? É que eu tenho de marcar os meus.
- Não te importas?
- De modo algum. Eu marco então para quinta-feira. Está combinado - rematou Ana em jeito de mudança de assunto quando ouviu o toque de saída que traria dúzias de indiscretos ouvidos para a sala de professores.
Na tarde desse dia, tinha reuniões intercalares, sem no entanto contar com a presença dele. O dia foi correndo, as reuniões passaram, foi para casa, dormiu, acordou, saiu, chegou à escola. Mais um dia que seria longo. Tinha aulas e direcção de turma até às sete e meia da noite e a seguir mais uma reunião que se pretendia rápida. Foi, foi. Saiu da escola às nove da noite e foi mesmo a casa tomar banho e dormir.
Quinta-feira de manhã, que é como quem diz, às seis da manhã, Ana acordou, embora cansada, mas sem suportar mais dormir agarrada à almofada. Esperou até às sete e levantou-se, arrumou-se e saiu.
Tomou o pequeno-almoço na escola e começou o seu dia de trabalho. Tinha feito um esforço para não se vestir como quem vai à horta, como costumava dizer. Lá pôs uma saia comprida, um camiseiro por baixo de uma camisola fofinha, esqueceu-se e levou novamente a carteira que tinha aspecto de ter estado presente na primeira e segunda guerras mundiais, Vietname, Golfo e ainda num derby Benfica-Sporting.
As aulas da manhã decorreram bem. Ao chegar a hora de almoço, quando se dirigiram à cantina da escola, informaram-nos que os almoços tinham sido alterados devido às visitas de estudo. Perante este facto não foi preciso falar sequer na solução.
Carlos virou-se para Ana e perguntou-lhe:
- Estás com tempo?
- Eu estou. - disse ela, contente por reparar que afinal pensavam do mesmo modo.
- Então vamos. - disse ele. Despediram-se com um seco “até logo” do funcionário de serviço aos almoços, viraram costas, saíram da escola, meteram-se no carro dele e foram até um restaurante italiano que não ficava nada longe. Fora uma sugestão dela. Tinha lá ido arrastada por uma amiga e tinha gostado.
- Então é porque é bom - dissera ele com ar simpático.
Ele escolheu “spaghetti a la carbonara” e ela, como não podia deixar de ser, uma piza que acabou por aparecer com umas anchovas irritantes lá pelo meio. “Devem achar que sou alguma foca,” pensou ela. Beberam vinho tinto da casa, que era bom, macio e encorpado, embora sem nenhuma outra característica de realce. Ele enchia-lhe o copo com naturalidade. Conversaram com naturalidade. Falaram novamente de si mesmos com naturalidade. Sempre que estavam sós e fora da escola era assim. Parecia tudo muito natural. Ana pensou que isto se devia ao facto de as coisas serem mesmo naturais. Tinham origens semelhantes, percursos diferentes. Ela ficara sempre na mesma cidade. Ele andara por todo lado, a estudar e a trabalhar. Ele era um pouco mais velho que ela. Por fora. Ana não sabia bem como ela própria era por fora. Decerto ninguém sabe isso. Achamos sempre que somos de um determinado modo, mas provavelmente quem nos circunda pensa diferentemente. Ana entristecia-se por achar que não crescia por dentro, só envelhecia por fora. Mas quem trabalhava com ela dizia que ela era super organizada (“se eles vissem o meu guarda-fatos”), calma, sincera, criativa e sensível (“provavelmente sou sensível demais”). Podia estar a criar uma imagem dele, e estava mesmo, e estava ciente disso mesmo, desse processo enganoso que deriva da imagem, da aparência. Mas não era isso que ela queria. Ana queria conhecê-lo, como ele era, e no emprego isso era impossível. Mas tinham tão pouco tempo que mesmo que se esforçassem muito conseguiriam talvez passar umas quatro horas juntos por semana. Isso não é nada. Pensou. Tenho que fazer alguma coisa quanto a isso: vou desistir!
O almoço correu bem. Quando chegou a conta ele insistiu em pagar e Ana ficou um pouco envergonhada, já que tinha sido ela a sugerir o lugar que não era nem caro, nem barato, e ainda por cima só ela comera sobremesa. Novamente o sentimento de culpa. Que horror, que mesquinhez. Pronto, se ele quer pagar, que pague, é porque não lhe faz muita falta, apesar de não termos recebido o ordenado.
E voltaram para a escola mais animados. Ela só tinha papelada para arrumar, ele tinha aulas para dar. Lá se passou a tarde.
Quando saíram, por coincidência, à mesma hora, ele despediu-se com dois beijinhos, que ela estranhou, pois não era hábito dele. Ana gostou dos beijinhos, especialmente porque foram acompanhados de um belo sorriso e olhos brilhantes. Declare-se aqui que o almoço e o vinho já tinham passado havia quatro horas! Que foi aquilo então? Má digestão!
Como o fim-de-semana era prolongado, Ana passou três dias a olhar para o telemóvel de meia em meia hora. Mas nada aconteceu.
Eu sou uma desgraça. Bem, ele não me liga porque está a trabalhar. Ou não? Bem, o facto é que... não liga. Para compensar, Ana ligou para a linha de informações permanentes e foi teclando para saltitar de menu em menu, sem ouvir nada até ao fim. Desligou. Gastei dois minutos e dez segundos. Lá vão mais uns trocos. Se eu namorasse por telefone, gastava bem mais. Antes gastasse. Não! Antes não fosse preciso o telefone.

“Rio, rio, rio,
rio para não chorar.
Pois na verdade sou rio
A cantar”.
Foi a primeira coisa que lhe veio à cabeça na segunda-feira de manhã. Aquele refrão da Daniela Mercury que parece alegre e triste ao mesmo tempo, pelo jogo de palavras tão bem cantado. “Oh, cerebrozinho cansado que tu tens, Ana. Gasta-lo sem necessidade.”
Na escola, encontrou-o sério, pouco falador...
“Mas que merda esta! Já desligou outra vez”. Ana entristeceu ainda mais. Não sabia o que havia de fazer.
“Isto não é uma obsessão, não é uma tara, não é uma toleira de adolescente. Eu gosto dele, porra, e muito. É legítimo não é? Porque é que ele não me dá troco? Como será que ele me vê? Como uma miúda chata, sem piada, sem iniciativa e sem perfil de modelo? Deve ser mesmo isso. Mas se é, porque é que, na maioria das vezes, é tão simpático comigo? Só se for masoquista. Ai, Ana, Ana, esqueceste-te de um pequeno pormenor. Ser simpático faz parte da sua formação académica e profissional. Não te confundas e vê lá se paras de ser estúpida. Não gostes nem sirvas quem não te merece! Jesus fez isso e vê só o que lhe aconteceu. Vê lá se aprendes a diferenciar amizade de amor (se é que isso existe).”

Mas dentro da cabeça de Carlos…
“O que é que ela tem hoje? Estava tão linda na quinta-feira, tão doce, tão autêntica. Agora parece que voltou a pôr aquela capa. Caramba, ela não é minha professora, comigo não é preciso teatro nenhum. Só quero que ela seja ela mesma. Esta história de trabalhar também aos fins-de-semana não me ajuda nada. Ela fica sempre em casa com os pais. Parece que atira com o trabalho todo para esses dias, como se estivesse a fugir de alguma coisa. E eu não posso deixar de ir ao treino hoje, senão... senão nada. Ela trabalha até mais tarde hoje. Ela está sempre a trabalhar, e quando não está, enfia-se em casa. Nunca a apanho sozinha. Também, se isso acontecesse, eu ia pensar que era um bocado solta demais. Não é que eu não goste de ter uma amiga que saia à noite, e por aí... Mas meninas certinhas são outra história. Mas também ainda não percebi a Beatriz. É tão certinha, mas parece que lá dentro é um vulcão. O que eu acho engraçado é que quem a vê normalmente com aquela roupa larga, nem sonha as pernas e ancas que ela tem. Boazona. Não é uma beldade, nem tem os longos cabelos negros que eu adoro, mas é, por isso mesmo, bonita. E muito bonita por dentro. É tão sensível que me assusta. Aqueles olhos têm raio-x. Trespassam-me. Acho que ela nem se apercebe disso. Olha-me tão fundo que me causa arrepios, que não são propriamente desagradáveis. É tão natural a conviver, pelo menos comigo. Quando fui trabalhar para escola, foi simpática desde os primeiros dias e até me deu valentes ajudas. E tem-no feito. Tão gentil e diligente. Será que ela sente algo por mim? Será que finalmente não vou partir o nariz na porta? Acabo sempre por escapar aos compromissos e sinto-me só. Quero assentar. Será ela?”

“Porque será que dizem que são os homens que tomam decisões? Nunca vou entender isso. Eu sou da opinião de que eles costumam ser empurrados para as decisões. Só não digo por quem, para não ser mazinha.”

Alguns dias e almoços depois, ela passou numa rua onde sabia estar o carro dele. Estacionou o seu, saiu e esperou um pouco. O dia seguinte iria ser importante para ele, ela sabia disso. Ainda mais, estariam quatro dias sem se encontrar. E não foi de meias medidas. Foi um daqueles “repentes” como Ana dizia. Pensou que não sabia a que hora terminaria o treino dele. Com um pouco de sorte era às sete e meia. Com o azar normal seria depois das oito. Foi esperando e gelando. Estava um vento frio de Dezembro que ela não apreciava especialmente. Além disso, era noite e o local pouco aconselhável. Quem passava olhava com desconfiança.
“Assim não dá, e tenho de ir para casa, caramba.”
Lembrou-se que lhe tinham oferecido uma rosa, na brincadeira, numa das aulas desse dia. Ela vira-a. Estava na carteira de Ana. Arranjou um papel branco, escreveu uma mensagem de felicidades para o dia seguinte, não assinou. Dobrou o papel, meteu a rosa lá dentro e prendeu a sua missiva na escova do pára-brisas do carro dele. Dirigiu-se ao seu, entrou e partiu. O mais provável era: a) alguém retirar a rosa, b) chover a potes e estragar a mensagem, c) ele entrar disparado e nem reparar. Acreditou mais na hipótese c). Já imaginava o carro em pleno andamento, a chuva a começar a cair, ele a ligar as escovas e lá vai rosa para o chão... já agora podia passar um camião em sentido contrário para esborrachar a flor e destruir para sempre aquela mensagem que traduzida era só “um grande beijo para ti, vou ter saudades tuas nestes quatro dias intermináveis”.
Durante o dia seguinte chegou a ter o telemóvel ligado nas aulas. Também ninguém reparou, não tocou, como é óbvio. Depois de um almoço terrível de carne e puré, que lhe provocara vómitos, ia dar teste de duas horas a uma turma do 12º ano. Começou então a definhar.
Tinha andado a pensar tanto, ou melhor, a sonhar tanto que se esquecera de coisas urgentes. Tinha cinquenta minutos para resolvê-las todas entre as últimas aulas e o seu treino de quinta-feira. Será que ele iria aparecer para o treino dele, por coincidência ou sorte, à mesma hora do de Ana?

“Será que ele viu a rosa? Será que ele se lembra da alcunha por que eu o tratei? Fui eu que inventei. A mensagem tinha pelo menos duas pistas bastante claras. Mas ele às vezes parece tão distraído que já nem afirmo coisa nenhuma. E se ele viu e não achou piada nenhuma? E se ele namora ou sai com alguém que eu não conheço? E se o sentido de humor dele não combina com estas coisas? Bem, tenho a consciência tranquila porque não abusei e também porque finalmente fiz alguma coisa diferente. Porra! Fiz! Só que ainda não resultou. Pronto, lá estou eu com a pressa toda. Já me dei mal com isso, não em vidas passadas, mas mesmo nesta. Tenho a mania de trabalhar e querer resultados imediatos, visíveis, preto no branco. Nem todas as pessoas são assim. Então, é nessa parte que entro em derrapagem cerebral. Acelero, acelero, e é só areia debaixo dos meus pés.”

Mas que depressivo. Que horror. Vocês continuam a ler? Que pachorra.
Pachorra era o que faltava a Ana. Não se entendia bem com esperas e irritava-se com os seus próprios erros. Lera havia uns dias uma citação do Dalai Lama: “só há dois tipos de problemas: os que têm solução, portanto não nos devemos preocupar com eles, devemos sim partir para a resolução; e os que não têm solução. Com estes não vale a pena preocuparmo-nos. Para quê? Não têm solução!” Ele tinha razão. Mas a raiz do problema era a definição que Ana tinha criado de “problema”. Aquilo que para os outros eram simples acontecimentos, era sempre decomposto por ela em factores, causas, consequências, hipótese de resolução, projectos de resolução, requerimentos para autorização de resolução, análise de variantes e... solução. Isto significava que normalmente a cabeça de Ana era um emaranhado de raciocínios indescritíveis e desnecessários, por duas razões:
Primeira, inventava problemas onde não os havia, pelo menos para todas as outras pessoas que ela conhecia;
Segunda, demorava tanto a pensar nesses “problemas” que ainda ia na pré-resolução do primeiro e já tinha mais dez para começar a analisar.
Era então que ela gostava de acreditar que Deus existe. Esperava sempre por uma réstia de justiça. Incrível, mas Ana por vezes descobria dentro de si algo de maravilhoso a que gostava de chamar esperança, embora no dicionário se chamasse desespero ou alucinação.

Ele nunca falou na flor, nunca agradeceu a simpatia. Continuou a ser bom colega. Ana entendeu que sempre que achava que alguém era distraído (em relação ao que ela dizia a essa pessoa), não se tratava de distracção. Era pura e simplesmente ignorância da tal a quem chamavam Ana, uma pateta alegre que tinha a mania de fazer má cara e adorar toda a gente.
Ana deixou-se morrer aqui. No final de Dezembro. Na passagem do ano, do século, do milénio. Isto se o calendário gregoriano continuar certo!...

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