domingo, 11 de julho de 2010

RESUMO

Passam hoje quatro meses...

NOTA

Antes de começar a publicação do RESUMO escrito pela Susana, devo esclarecer: trata-se do resumo de uma vida, muito cedo truncada. O texto foi apenas revisto, pois verifiquei que o não tinha sido. Foram apenas corrigidas algumas falhas ortográficas, pois, ao que me parece, a Susana já não estava nos seus melhores dias para escrever e rever tudo.

Falta parte que anda por uns caderninhos que encontrei dispersos e que ainda terei de transcrever.

Tentei dividi-lo numa espécie de capítulos, dada a sua extensão.

O Pai Bártolo

RESUMO

Para já acho que isto é um acto egoísta. Despejar tudo, ou quase, porque há coisas que esqueci deliberadamente ou não, para fora da minha cabeça, sem atentar ao efeito nocivo que poderá ter nos outros, isso não é ético.

Mas também não acho que o Universo tenha sido muito ético comigo. Tenho cancro. Mudou a minha vida toda desde o último trimestre de 2006.

Vivia sozinha, num apartamento T3 duplex, dos pais. Fazia a minha vida toda de arrumações, limpeza e manutenção da casa, dava aulas a tempo inteiro na formação técnica e profissional.

Nós, mamíferos humanos, só temos os pais, não os progenitores, mas os que nos criaram.

O que transcrevo a seguir é uma pobre arrumação de factos encontrados em agendas e em estreitos locais da minha memória de tudo o que aconteceu. Enquanto fui escrevendo, reparei que há factos e pormenores que esqueci mesmo. Penso que o fiz deliberadamente, ou por não ter gostado, ou porque me magoou, ou …não sei. O que se segue é o que recordo em Agosto de 2009.

Será longo e aborrecido, cru, e feio muitas vezes. Talvez arrepiante. Aviso desde já por isso. Não é próprio para quem é sensível. Cheguei a um ponto em que não ligo se tenho um fígado aberto á minha frente ou não. A qualquer momento o meu sarcoma sinovial pode invadir qualquer órgão ou parte do corpo que me atrapalhe muito ou não. Da última vez deixei de andar. Recuperei um pouco e esse processo ainda se desenrola. Mas também notei um alto no trapézio esquerdo. Talvez encolha com a quimioterapia, senão, lá vou eu para o bloco, com toda esta medicação da dor e tudo. É concerteza um caso complexo. Penso que os meus pais ainda não se aperceberam desta última novidade. Deixá-los descansar um pouco. O meu médico percebeu a minha indirecta e não fez alarido, dentro do possível, quando vão os dois a todas as consultas e depois de eu ter de fazer mais um TAC. (não deixamos pereceber, mas apercebemo-nos)

E é assim que passo os dias. Vamos ver se chega ao fim, de refeição em refeição (onde dominam os comprimidos), sem nada útil que se faça, com medo de partir algum osso dos fragilizados, com medo da gripe H1N1, com medo de tudo, respirando e arrastando-me como um caracol por estes dias que passam, pois a isto não se chama vida.

Não passo os dias a chorar, só tenho tendência para chorar de manhã, estou serena, tento ser agradável e optimista para os outros porque não têm que aguentar com depressões todo o tempo, mas por dentro é assim um pouco escuro. Estou a perder o gás. Vou na terceira tentativa, sei o que significa, conheço as estatísticas. Espero que tudo saia errado e eu seja uma excepção, já que tenho sido em tantas situações. Sei que o meu médico sabe que eu sei disto (de repente soou-me a política, hein?)

A minha mãe descobriu com este processo todo, e através do que lhe contaram de mim, que eu tinha um óptimo sentido de humor pregava partidas a toda a gente, e punha tudo a mexer. Pois era. Pena que não tivesse cumprido os meus sonhos melhor, em vez de me preocupar com os problemas dos outros. Mas assim não deixo filhos por criar. Ainda não concluí grande coisa acerca do assunto, mas penso que deve ser melhor assim. Como costuma dizer o Frei capelão do IPO, “coitadinha daquela senhora da cama y, que tem filhinhos”, e eu a olhar, né?

Aqui fica aquilo de que me lembro.

2006

Segunda-feira, 19 de Junho: o meu pai vai a consulta de cardiologia. Ficou a saber que o coração estava bastante fraco e precisa de uma ajuda. O enfarte foi em Outubro de 2005. No dia 13 de Julho dá entrada no bloco para colocar um cardioversor desfribilhador implantável, isto quer dizer que é um pacemaker capaz de dar choques para nivelar o ritmo do coração, quando necessário. Além disso, também grava qualquer anomalia que se passe para que na consulta seguinte se possa saber se há algo errado. Foi numa quinta-feira.

Na segunda-feira seguinte foi feita a prova de candidatos lá da escola onde eu dava formação a tempo inteiro. Fazia parte das minhas tarefas corrigir a parte de Inglês. No sábado terei ainda de entregar o trabalho de História da Educação a Pós-graduação em Ciências da Educação em que me meti este ano. Tinha intenções de seguir para mestrado pela via clássica, antes desta confusão de Bolonhas e que tais. Todos os sábados faço 100 km para um dia de aulas e para trazer pesquisas e trabalhos ou apresentações para fazer. Por vezes são em grupo. Tenho mais três colegas daqui perto. Mas conjugar horários não é fácil. Sobram os serões.

Esta semana lá consegui ir ver o meu pai ao hospital. Está a recuperar bem, mas não come nada. A comida do hospital é horrível segundo ele diz, e desenvolveu uma verdadeira rejeição a brócolos.

Está um tempo exageradamente quente e seco, e a zona do hospital é um monte de cimento, sem árvores, só calor. Tenho tosse, sinto imensa expectoração que parece estar colada e não quer sair.

Para estar mais disponível para transportadora lá de casa, só vou às consultas do SAP (fora de horas). Consigo ir á aldeia com a minha mãe, levando o meu pai com a premissa de ficar quietinho enquanto nós mudamos a água aos patos, galinhas e gansos. É preciso também dar-lhes ração. O meu carrito quase fica no fundo com dois sacos de ração, mas quando é preciso arranjamos força para tudo.

Continuo com muita tosse de noite. É uma tosse seca, que incomoda o prédio todo. Parece que toda a gente se habituou e não me dizem nada, excepto a minha mãe. Os médicos que tenho apanhado no SAP receitam-me xarope e dizem-me para aumentar a ingestão de líquidos.

Naquele dia que tive o ataque mais forte durante a visita ao meu pai, pensei: “se entrar nestas urgências, já não saio”. Consegui chegar ao meu carro. Pelo caminho, ia tossindo, de forma violenta, chegando a chamar a atenção de pessoas por quem ia passando. Uma das vezes que tossi, com um lenço á frente, saiu uma bola escura de expectoração, do tamanho de duas tâmaras. Não tinha sangue vivo, pelo que não liguei muito. E aliviou-me. Podia ser da amigdalite, podia ser esforço da garganta devido ao calor e á tosse seca. Fui directa ao SAP, contei á médica que me disse para beber mais líquidos. Ainda tive tempo de voltar á visita, para o meu pai me ver bem e fresquinha.

Foram correrias loucas e quase impossíveis que fiz para chegar a todos os compromissos. Só foi possível porque sou louca, o meu carro cabe em todo o lado e há menos gente em Julho cá na terra.

Finais de Agosto, pai a recuperar os movimentos do braço e da sutura fresquita. De novo na casa deles, a apanhar ar fresco, convencido que já poderia conduzir se necessário.

Por hoje é só isto

Um abraço

O pai Bártolo

7 comentários:

Branca disse...

Em todo o texto se reconhece o sentido forte e bem humorado de vida da Susana, que mesmo que estivesse mal por dentro, nunca o queria demonstrar.
Quando me escreveu a sua última carta, sentia-se o mesmo, em meados de Fevereiro e já não muito bem e mesmo quando já não conseguia evitar falar dela, acrescentava " Estive por aqui a falar de mim, que é um mal que ataca gente fechada e sem distracções actualizadas."
No entanto ela era uma miúda sempre actualizada, pela sensibilidade enorme que tinha e espírito de sacrifício e amor que se expressa em mais uma passagem dessa carta, quando diz: "Os meus pais vivem em função de mim. Eu tento virar-me mais para os horários deles (que também têm as suas maleitas e as suas medicações). Eles combinam coisas nas minhas costas agora. Portanto, também lhes posso mentir um pouco para ver se descansam mais".
Estas afirmações demonstram bem o espírito generoso e o sentido de humor que mesmo que às vezes já triste, nunca a abandonavam.

Um beijinho para vós.
Branca

Anónimo disse...

Olá Tia Branca.
Mais palavras para quê. As não palavras, os silêncios, os olhares tudo era percebido. Não se esqueça que somos iguais. Os pequenos gestos, embora que disfarçados, eram percebidos, sem enganos. Eu sei que ela tentava disfarçar, mas nem sempre o conseguia, e que nos queria poupar. É verdade viviamos para ela, só não queriamos que sofresse. Passava horas e horas no cadeirão ao lado da cama dela, quando era possivel, muitas vezes sem nada dizermos, mas não era preciso... Ao minimo sinal já estava a mexer-me.
Por outro lado eu sei, todos os que a acompanharam sabiam do seu humor, por vezes caustico, mas divertido...
Quando lhe escreveu já se notavam muitas falhas, foi precisamente a partir do dia 23 de Fevereiro que tal aconteceu. Notava-se na escrita, e em outras pequenas coisas. Olhe o telemóvel dela estava "armadilhado" de forma que não precisava do pin... Só mais tarde percebi.
Por agora fico por aqui.
Obrigado por ter gostado/gostar da nossa filha.
O pai Bártolo

Branca disse...

Sim, e no dia 24 e 25 eu estive fora, no Alentejo e quando regressei vi a carta à noite e a 26,que acho que foi uma Sexta-feira, ainda lhe telefonei a agradecer e a dizer que gostava imenso de as escrever e o ia fazer, já á notei aí muito cansada e quando lhe disse "Estás cansadita, vou-te deixar descansar" ela esboçou um sorriso fraco de assentimento, um sorriso que notei no som,como se soubesse que não voltaria a falar comigo.

Recordo tantas vezes essa conversa e outras, a vontade que ela tinha desde o Natal de chegar um bocadinho mais até aqui, mas o tempo não chegou para que nos conhecessemos, ela dizia na carta que não queria mandar fotografias, embora já me tivesse mandado a que sabe, por telemóvel na noite de Natal, porque só um de vós a poderia ter tirado, mas dizia que pensava noutra surpresa...quem sabe seria essa, a de nos conhecermos e que nunca chegamos a concretizar.

Num internamento anterior cheguei a ligar para o Hospital e pensei meter-me no comboio e aparecer de surpresa, mas refecti que ela ao contrário do que eu pensava a princípio poderia não aceitar bem e acabei por lhe contar, foi assim que fiquei a conhecer as estações e uma série de pormenores, mas percebi que ela preferia esperar, que tinha nessa altura ainda esperança de que haveriam melhores dias de sol para esse encontro e no hospital sem dúvida preferia os pais sempre por perto.

Deixo-lhe um beijinho, gostei de recordar consigo.
Fiquem bem, o melhor que puderem.
Branca

sideny disse...

Olá Sr Bártolo

Li com bastante atençâo mas nâo consigo dizer nada.

Tenho um mail escrito pela Susana

onde me diz que os tratamentos eram bastante dificeis.

Tenho muita pena de nâo á ter conhecido pessoalmente, e faz em agosto 1 ano que descobri o blog dela.

beijinhos para si e sua esposa.

Obrigado

Anónimo disse...

Olá a ambas.
Ontem passei por aqui,mas por um lado o sinal estava muito fraco aqui no "quintal" e por outro estava um pouco cansado. Desculpem.
Hoje fui ver os meus apontamentos e é verdade: foi a partir do dia 23 de Fevereiro que tudo se agravou mais. Percebi-o perfeitamente, desde o dormitar constante à falta de forças para os pequenos movimentos que ainda queria fazer...e até para comer, um inchaço no pescoço...
Percebi ao mudá-la da cama para a cadeira que já não voltaria, pois já não conseguiu agarrar-se ao meu pescoço.
Bem... Talvez amanhã consiga continuar com o texto.
Beijinhos
O pai Bártolo

. intemporal . disse...

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. sem palavras . que não sejam as da Susana . há tanto e para sempre tão nossas, por serem dela .

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. estou certo que um dia todos saberemos o porquê das coisas . e verificaremos então que não há despedidas que não sejam passagens . também elas efémeras . também elas existentes na rota . a que impreterivel.mente cumpriremos .

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. passo por aqui muitas vezes . só eu sei quantas . e talvez a Susana . talvez, para quem me lê . para mim, a certa certeza .

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. alguns dos meus silêncios são passados aqui .

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. e nenhum de nós está só .

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. um abraço . e deixo uma orquídea .

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. paulo .

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Anónimo disse...

Paulo:
Tão sábias as suas palavras...
Vivemos num mundo agitado, tantas vezes perocupados com ninharias e só quando se leva uma "pancada" deste tipo se aterra e se começam realmente a ver as coisas...
Em sei que passa muitas vezes, assim como eu o faço e nem sempre me manifesto.
Sem também que muitas outras pessoas andam a fazê-lo, sem dizerem "estou aqui pai orfão". Digam só olá que nos gostamos.
Ogrigado, Paulo, pela orquidea.
Um Abraço
O pai Bártolo